sexta-feira, 23 de julho de 2004

A grandeza de um "criador de pequena música"

«Mas acha que eu tenho categoria para ser entrevistado pelo 'Jornal de Letras'?...»

«Categoria... é responsabilidade no mundo da grande arte. Eu sou apenas um guitarrista de pequena música...»

«Sabe, estive a pensar... Ao dar uma entrevista ao 'Jornal de Letras' que é lido por pessoas que se interessam por arte e literatura, pelos problemas ligados à grande cultura, pergunto-me o que posso oferecer-lhes que seja do seu interesse...»

«Nunca fui capaz de traduzir convenientemente o meu pensamento através da palavra falada»

«Não, não pense nisso. Daqui a uns anos já ninguém poderá ouvir esta música de guitarras. Isto vai passar.»

«Oh, o que sou eu ao lado de Theodorakis?!... A minha música não se pode comparar, em grandeza, à de Theodorakis. O Theodorakis utiliza os recursos da música erudita e faz obras que vão perdurar. A minha música só ficará no espírito daqueles que a viveram no seu tempo. Não tem mais seguidores. Inevitavelmente vai passar...»

«Eu pertenço, como é óbvio, ao mundo da pequena música e tenho a experiência suficiente para saber que ela cumpre uma função específica. É que a grande música não deve usar-se em todas as circunstâncias, para seu benefício e de quantos verdadeiramente a apreciam. Por isso, há sempre um lugar em cada canto para a pequena música, um lugar onde ela saberá ser útil, à sua maneira.»

«Normalmente, quando se fala em estética, fala-se sob o ponto de vista da grande arte. Se eu fosse aplicar as preocupações estéticas da música erudita à minha música dava 'bota' de certeza.»

«Há um jovem do rock, estudioso da guitarra eléctrica, que me pediu para lhe ensinar guitarra portuguesa. Esse jovem disse-me que o 'Verdes Anos' lhe sugeria uma paisagem portuguesa. Ora, acontece que estamos todos ligados por sugestões comuns que nos dizem as mesmas coisas. Na música menor forma-se uma série de símbolos que acabam por significar determinadas coisas. A simbologia funciona como uma linguagem comum: uma certa melancolia, um lamento, a raiva... É aí que as pessoas ainda encontram uma linguagem que pode ligar várias gerações.»

«O rock é um fenómeno que temos que aceitar. Consegue pôr a fazer música a juventude de diversos países. Tem que ser considerado como um instrumento de divulgação cultural. Aliás, tenho tido contacto com alguns músicos de rock, lá na zona onde moro, em Benfica.»

«Épico, eu?... Não, meu amigo (sorri como uma criança). E não há arte absoluta. Isto é, não há nenhuma forma de arte que, por si própria, possa emocionar, comover, ou chocar as pessoas; emociona, comove, ou choca, a partir da experiência e da vivência cultural já adquiridas pelo indivíduo que a recebe.»

«Minha mãe e meu pai preocupavam-se muito que eu estudasse música. De tal forma que comecei a tocar guitarra aos 12 anos e era sujeito a uma disciplina de ferro. Este método estava completamente fora do que seria o ideal. Na verdade, a guitarra exige indisciplina... (...) É verdade. Só com uma certa indisciplina é que se chega a dar toda a expressão à guitarra. É a grande diferença entre a guitarra e os outros instrumentos, que requerem uma grande., disciplina. A disciplina na guitarra acabaria por tornar neutro o seu som.»

«[O fado] foi duramente atingido pelo fascismo, a partir da altura em que o António Ferro resolveu assimilá-lo ao turismo e passou, por esse processo, a limitá-lo, a censurá-lo e a comercializá-lo no pior sentido. Porém, outro tipo de fado continuou a tocar-se à margem das casas de fado.»

«Quero ser considerado um pequeno músico e se me conseguir realizar como pequeno músico, sentir-me-ei extremamente satisfeito.»


Pedaços de uma entrevista concedida por Carlos Paredes, em Setembro de 1981, a António Duarte, do Jornal de Letras. Leitura obrigatória.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Os comentários antigos, da haloscan/echo, desapareceram. Estão por isso de regresso estes comentários do blogger/google.