sábado, 18 de outubro de 2003

Entrevista a Tom Zé (parte 3)

(Continuação da excelente entrevista com Tom Zé.)

Nestrovski - Tem uma história que você me contou uma vez... O caso do dinheiro que você escondia.
Ah, do tio, bom, do tio Elias, eu roubei o dinheiro do tio Elias, roubava sempre, não é? Aí comecei a viver uma vida de terror. Eu já tinha o terror na primeira infância...

Nestrovski - Eram uns colegas seus que lhe ameaçavam, não?
Isso, isso, a minha vida toda foi roubando e sendo roubado, não é? Quando entrei na escola primária, nessa sala da professora Joselita, aconteceu um incidente, um menino maior me deu uns cascudos. Meu pai foi na casa da viúva mãe dele se queixar, gritou lá. Meu pai chamava-se Cochicho, porque gritava muito, todo mundo aceitava isso, não era briga, não era nada. E meu pai nunca brigou com ninguém. Então, o professor Artur, para agradar meu pai, me botou na classe dele.
Ora, em Irará só tinha primeiro, segundo, terceiro e quarto anos primários, sendo que o quarto ano primário era a última escola. Então, muita gente que não queria sair da escola ficava lá no quarto ano. Eu saí do primeiro, onde já era tímido, envergonhado, fui para o quarto, onde estavam aqueles malandrões, que já eram um moleques mesmo de rua, barras-pesadas, e que não queriam sair da escola. Não passavam nunca do quarto ano. Então, eu... se no primeiro já era uma dificuldade, ali foi um inferno. Até meu primo, que Deus o abençoe -de quem meu pai tinha, em 1943, comprado a tal casa nova e ele passado a morar na casa em que eu morava antes-, ele, que já estava também humilhado (e eu não sabia), me tratava mal para caramba.
Eu pensava mesmo que eu era um espúrio. Então um moleque, que sentava comigo, Deus o abençoe, o Miro, começou a fazer um jogo assim: eu pego um objeto, um livro meu, ele diz uma palavra, o livro é dele. Quando não posso dar o livro, fico devendo um cruzeiro. De vez em quando eu pegava ele, mas ele me pegava a semana toda. Aí, no fim da semana estava devendo a ele 17 mil réis; ele chegava na pastelaria do meu pai, me dava 5.000 réis para comprar um cigarro e eu dava o troco da compra a ele mais os 17 mil réis que devia, do "contrato" na escola.
No princípio, isso só metia medo a mim, depois eu vi que essa história ia se espalhando e então o terror ia ficando cada vez maior. Demorou três anos para o meu pai saber. Não tive coragem de contar dentro de casa: "Estou sendo espoliado". Então, me habituei a viver sob terror. Então, depois eu mesmo roubava na loja de meu pai.
Uma vez eu peguei o dinheiro de meu tio em Salvador. Aí meu pai foi me buscar, todo mundo já contra mim. A família ficava contra você. Primeiro, você já era um moleque nascido lá do casamento que ninguém aprovava muito, aqueles porquinhos todos nascendo naquela casa pobre e tal (antes de meu pai mudar para a casa grande, em 1943); a família de minha mãe já saindo do campesinato e indo para a universidade, família culta e tal, então, já era muito difícil aceitar a gente. Eu via tudo, não sabia por que diabos não me ensinaram a pegar num garfo para não passar tanto vexame e lá vai o diabo acontecendo.
Um dia roubei o dinheiro do tio Elias, que também me roubaram na praia, e eu não desfrutei o dinheiro, não é? Um cara mais velho tomou o dinheiro para guardar e sumiu com ele. Eu ficava com vergonha de perguntar: "Cadê o dinheiro?". Veja como eu era idiota [risos]. Aí meu pai foi chamado, no dia que descobriram que fui eu, e meu pai me disse assim: "Meu filho, levo você até a beira do abismo". Esse tipo de coisa trágica: era como se eu fosse um criminoso lá dentro de casa. Um negócio estranho, meu pai era uma pessoa que não maltratava a gente nunca. Então, essas coisas me botavam num mundo trágico. Eu não sabia nem o nome, falava "trágico" para poder me defender um pouco, nominar. Aí fugi de casa, fiz o diabo...
Até que um dia um professor de história... O professor Orlando Bahia Monteiro, ele falava baixinho, e como falava baixinho, comecei a ouvir. Ele inaugurou, naquele ano, uma tal de história interpretativa: fatores que levam a pensar que o descobrimento do Brasil foi intencional e fatores que levam a pensar que não foi intencional, os argumentos são tais e tais. Ora, uma coisa de argumento você presta atenção, é quase um júri em sua presença. Então, eu prestei atenção. Na aula seguinte, ele me chama, eu não sabia que sabia, tirei nota nove na tal da sabatina. Novamente não tomei bolo, tirei nota nove. E, então, eu comecei a estudar história porque ele me gabava. Comecei a estudar história para não negá-lo. Foi nesse ano que eu comecei a estudar (depois daquele terceiro ano que eu perdi).
Aí a professora de português, professora Belmira, um dia disse uma coisa comovente, um negócio assim: "Vocês têm que aprender português" -aquela professora miudinha, negra, sentada naquela cadeira enorme, parecia sumir ali, mas ela era de um vigor! Eu não pensava em escrever nem fazer música nem nada, mas ela disse o seguinte: "Vocês têm que aprender português. De onde é que vão sair os escritores e os poetas?".
Ora, só ter uma expectativa boa sobre mim, mesmo como coletividade, era um bálsamo. Eu fiquei com os olhos mareados lá no fundo da sala. Naturalmente me escondi, para ninguém ver. Mas aquilo me bateu que eu comecei a estudar português também, porque a mulher tinha me agradado. Tanto é que virei estudante, a partir desse ano. Voltei a estudar, equilibraram-se as coisas e tal. E aí tudo é fanático, não é? Quando voltei a estudar, voltei como cdf.

(continua)

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