quinta-feira, 16 de outubro de 2003

Entrevista a Tom Zé (parte 1)

(Esta é a primeira parte de uma entrevista a Tom Zé, recentemente publicada pela Folha de São Paulo, que a minha amiga Katia Abreu gentilmente me enviou. É deliciosa esta conversa com um dos maiores músicos do Brasil.)

TOM ZÉ, QUE COMPLETOU 67 ANOS ONTEM, RELEMBRA SUA INFÂNCIA, NARRA QUANDO VIU LUZ ELÉTRICA PELA PRIMEIRA VEZ E CONTA COMO, AOS 17 ANOS, SE INTERESSOU PELO VIOLÃO

A MÚSICA QUE VEIO DE IRARÁ
por Arthur Nestrovski e Luiz Tatit


Três em ponto da tarde. Tom Zé está no sofá, passando remédio no pé. "Rapaz, tinha jurado que estaria pronto para receber vocês." Precisa tratar de uma "doença de velho": esporão de calcâneo. Se a cena fosse ensaiada, não seria melhor. O misto de intimidade e estranheza, o vocabulário ("esporão de calcâneo"), para nós tão diferente, mas ao mesmo tempo tão direto e humano, o tom irreprodutível da voz, naquele sotaque nordestino que se conhece tão bem, já estava tudo ali, mais a delicadeza e humor que marcam sempre o que ele faz. E a jura: se tinha jurado, só podia ser à Neusa, companheira de todos os momentos há mais de 30 anos, musa, parceira de trabalho e "ponto", de quem ele se declara total e amorosamente dependente. Tom Zé sem Neusa não existe.
A entrevista foi na sala. Os três sentados à volta da mesa, que Neusa cobriu com um cobertor para proteger nossas mãos do frio -só mais um exemplo da sabedoria franca e generosa do casal. Tom Zé fala fácil e fala bastante. Assume o papel de entrevistado com o mesmo empenho que demonstra em compor, cantar, escrever, cuidar dos periquitos e do jardim do prédio. Qualquer sugestão basta para ele desfiar histórias e mais histórias, sem que nenhuma deixe de ter pertinência. Mais que pertinência: singularidade.
Fora do Brasil, Tom Zé conquistou um reconhecimento que, mesmo hoje, consagrado que seja entre nós, ainda pode causar surpresa. Desde 1990, quando David Byrne produziu o CD "The Best of Tom Zé" nos EUA, ele vem sendo reverenciado em matérias de capa de publicações como o "The New York Times", "Le Monde", "The Guardian", "Village Voice", "Le Nouvel Observateur". "Mr. Zé" (pronuncia-se "Zi") entra regularmente nas listas de melhores discos da década ou até mesmo do século passado. Nada disso abala a cordialidade gentilíssima e a psicanalisada modéstia do mestre de Irará.
Tudo acaba voltando para lá, aliás. Tom Zé pode não saber para onde vai até fazer questão de não saber, para que as coisas possam acontecer e a surpresa cumpra seu papel, mas não esquece um segundo de onde vem. As histórias que ele conta sugerem outro mundo, um Brasil tão arcaico que quase não dá para imaginar. Mas que continua vivo em cada frase do cavaquinho e cada contraponto do baixo, como em cada ruído estranho dos instrumentos que ele vem inventando há anos, reanimando uma tradição da Escola de Música da Bahia, onde estudou com seus queridos professores Ernst Widmer e Hans Joachim Koellreutter.
Foram três horas de fita gravada, fora o intervalo para o lanche (musse de maracujá). Não é possível transcrever tudo; mas é quase impossível cortar. Sua fala vem pronta, só precisando daqueles ajustes mínimos de texto escrito: diminuir repetições, deixar alguns pronomes de fora, definir pontuação. Quase um paradoxo para quem se declara um compositor de "defeitos", um "falhador". Sua fala vem pronta. Quem não está pronto somos nós.
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Arthur Nestrovski é escritor e professor de literatura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). É autor de, entre outras obras, "Notas Musicais" (Publifolha).
Luiz Tatit é professor de linguística na USP e compositor.

A entrevista da qual se publica um trecho a seguir faz parte do livro "Tropicalista Lenta Luta", que será lançado no final deste mês pela Publifolha (288 págs., R$ 34). O volume traz também 25 textos do autor, fotos inéditas e todas as suas letras. Além disso, Tom Zé (1936) lança simultaneamente o CD "Imprensa Cantada 2003" e o DVD "Jogos de Armar", pela gravadora Trama.

Arthur Nestrovski - Você ouvia música em Irará?
Minha casa era geminada com o clube. No lugar onde eu dormia, a cama, eu me lembro bem, era encostada na parede do clube. Então, o bumbo do clube vivia no meu ouvido, quando tinha festa de mês em mês, tinha festa a noite toda. E eu ouvia mais alguma coisa lá das bandas que tocavam, mas o bumbo era mais presente, o bumbo era o novo útero da minha mãe, que deve ser essa a sensação, não é? Bum, o coração batendo, os dois depois batendo, o meu e o da mãe, não é? E essa é a única coisa a que se pode atribuir que eu tenho de inspiração de música.
Nunca tive nada a ver com o assunto, não é? Só aos 17 anos, o Renato, um dia, me disse: "Tom Zé, eu agora toco violão, não toco mais flauta". Eu estava indo ver as meninas no jardim, falei: "Que diabo". Foi naquele tal ano que eu tinha sido reprovado e fiquei em Irará, não fui nem estudar [em Salvador]. Era como se eu fosse abandonar os estudos. E no mês de agosto, um dia meio nublado de agosto, o Renato me disse: "Eu toco violão, e é muito mais bonito". O Renato era uns oito anos mais velho do que eu. Devo a ele o fato de ter começado a canalizar essa minha curiosidade.
Porque um dia, no campo de futebol, ele era uma dessas pessoas que gostavam de pensar coisas -na vida do interior tem muito isso-, um dia ele me disse, a gente estava perdendo para o time de Alagoinhas vergonhosamente e ele na torcida disse assim: "Você tem que jogar com a cabeça!".
Aquilo era um problema de trigonometria: jogar com a cabeça. Ninguém usava aquela metáfora. Futebol se jogava com os pés. Aí tive que repetir "jogar com a cabeça"; foi indo, foi indo até que entendi que eu devia prestar atenção em alguma coisa que nem podia imaginar o que era, no meio daqueles jogadores tão bons, que levavam a gente de aluvião.
Ele sempre me dizia uma coisa para eu pensar: "Você hoje vai torcer pelos bandidos ou pelo artista?". O artista era o mocinho, não é? E isso dava dor de cabeça. Você não podia imaginar que a pessoa pudesse torcer pelos bandidos. Era a negação da lógica. Da lógica bipolar e tal, do maniqueísmo. Ou melhor: a apresentação do maniqueísmo.
Então, um dia, ele fez essa interferência fatal na minha vida, quando me disse: "Eu não toco mais flauta, toco violão". "Puta merda!", eu falei. Estava indo ver as meninas, vi que as meninas já iam chegando, aquela aflição, mas eu tenho que ouvir Renato. Aí ouvi e ele prrramm: "Não quero outra vida, pescando no rio de Jereré...". No "de Jereré" a melodia faz dó, si, dó, ré; e o violão fazia dó, si, lá, sol. Contraponto do primeiro grau (veja como o contraponto estava na minha veia).
Esse contraponto do primeiro grau, nota contra nota, começando até com oitavas paralelas, se não me engano, esse contraponto me impressionou tanto que o mundo escureceu, as meninas desapareceram, naquela hora tudo girou, eu matei minha formiga preta. No interior dizem que, quando você mata uma formiga preta, escurece o mundo, que é o apocalipse, não é? Meu apocalipse foi ali: eu perdi completamente tudo em que estava ligado, todos os interesses momentâneos desapareceram com aquele buraco, não é? No eixo do ser. E no outro dia estava atrás de violão. Desse dia em diante nunca mais deixei de ficar atrás de música. Eu tinha 17 anos.

(continua)

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