sexta-feira, 17 de outubro de 2003

Entrevista a Tom Zé (parte 2)

(Continua a publicação da recente entrevista de Arthur Nestrovski e Luiz Tatit ao músico brasileiro Tom Zé.)

Nestrovski - Em casa não tinha ambiente para música?
Não. Minha mãe pintou durante o ginásio. Teve uma coisa com minha mãe, minha mãe Helena: ela foi a rebelde, porque lá pelo terceiro ano do ginásio disse a meu avô Pompílio que não queria mais estudar interna. Como não se podia mais botar uma moça na Bahia a não ser em Salvador e a não ser interna, ela voltou para Irará. Aí veio a casar com meu pai em 35; e eu nasci em 36.

Nestrovski - Seu pai tinha uma loja?
Tinha. Ele nasceu pobre-de-marré-desci, tinha tabuleta no princípio da vida, era marreteiro. Ganhou a sorte grande na Loteria Federal em 1920 e tantos. Então...

Luiz Tatit - Puxa! O grande prêmio da Loteria Federal?
Tudo era cósmico ou cômico lá. Meu pai tinha um bilhete premiado. Antes disso, tinha acontecido o seguinte: vocês conhecem a história no interior de enterrar pequenos potezinhos com moedas de libra esterlina? Essa era a maneira de passar heranças no interior. E o morto, para poder contar em vida, não contava aquilo a ninguém, era o mesmo que uma senha de banco, ele vinha em sonhos contar a alguém e você só podia desenterrar à meia-noite. Meu pai, que nunca teria coragem de ir à meia-noite em lugar nenhum desenterrar nada... não sei como foi parar uma herança dessas na mão dele.
Meu pai nunca teve parentes, eu nasci sabendo que ele não tinha parentes, porque os irmãos morreram tuberculosos, por pobreza, por isso, por aquilo, por aquilo outro, fome e tal. O lado de minha mãe que era a família rica. E eu na loja sabia que meu pai não tinha irmãos, que o pai dele tinha morrido há muito tempo. Aí meu pai conta que, quando ele ficou de posse do potezinho com as libras esterlinas, começaram a aparecer parentes de todo lado, gente dizendo que era sangue do sangue dele. Realmente, aqueles primos de segundo grau, primos de terceiro grau, concunhados, pode-se contrair uma parentela enorme na Bahia.
Então, um dia, meu pai resolveu dividir a herança. Isso era bem a cara dele, esse tipo de repente. "Olha, avise que eu vou dividir essa herança. Está marcado na casa de fulano de tal" -que ele não tinha casa- "tal dia, tal hora, vou levar as libras". Bom, vieram todos os interessados, deu tempo de correr os avisos, todos os interessados vieram, ele botou o pote no chão: "Uma sua, uma sua, uma minha, uma sua, uma sua, uma sua, uma minha..." -em três rodadas acabou. Ele aí chegou na porta da rua, o bilheteiro de Feira de Santana ia passando: "Seu Éverton, compra aqui, olha, uma boa centena, 0549". Ele ainda segurando as libras na mão assim: "Meu filho, não tenho dinheiro". "O que é isso aí na sua mão? Isso é dinheiro, seu Éverton, eu troco para o senhor". E ele comprou o bilhete inteiro, que foi premiado.

Tatit - Que loucura.
O homem divide a herança e já sai premiado. Então veio para Salvador receber, para saber o que se faz com um bilhete premiado. Ninguém sabia. Meu pai foi falar com Florentino Silva -eu cheguei a conhecer Florentino Silva. Eram grossistas na Bahia, uma família italiana, o que era raro por lá. Os caras estavam acostumados a tudo, naturalmente. Aí o Florentino disse: "Você dê um passeio aí, Éverton, trabalhe um pouco, que eu vou ver o que se faz. Bote o bilhete aqui". Meu pai botou o bilhete no cofre do Florentino e foi embora. Naquele tempo o mundo era de confiança.
Quando meu pai voltou, mais tarde, ele disse: "Éverton, o negócio é o seguinte: ou você entra num navio aqui no porto e vai para o Rio receber na Caixa Econômica ou tem um homem rico aqui que paga com 3%". Meu pai, que sempre teve ojeriza a viagem, recebeu 4.850 contos, botou nos bolsos, subiu em cima de um caminhão e foi para Irará. Isso era dinheiro para comprar metade da cidade.
Ele então começou a ter acesso a moças mais qualificadas, casou com a irmã da mãe de Roberto Santana, dona Mirandinha, que morreu com uma espinha que inflamou, uma coisa maluca. Aí meu pai casou com a irmã do pai de Roberto Santana, Helena Santana, irmã de Elísio Santana e Fernando Santana. Tanto que eu sou primo carnal de Roberto Santana, duas vezes.

Nestrovski - E seu pai abriu uma loja e você trabalhava no balcão, é isso? É, mas antes da loja trabalhei em padaria. Ele, uma época, largou a loja, em 40 e tantos, largou a loja e teve padaria, eu trabalhei, teve pastelaria, eu trabalhei, quando voltou para a loja, em 48, que luxo! Tudo limpinho, não sujava nada, fechava às 18h. Ah, que felicidade, trabalhava dia de sábado, porque era feira, mas que felicidade.

(continua)

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