segunda-feira, 27 de outubro de 2003

Regresso ao passado #5: Melleril de Nembutal

Esta recordação de um dos mais obscuros grupos que Lisboa viu nascer nos anos 80 tem uma razão especial de acontecer. A culpa é dos Animal Collective e da minha amiga Raquel Pinheiro, que se lembrou dos Melleril de Nembutal no concerto dos norte-americanos, este último fim-de-semana, no Númerofestival. E, bem vistas as coisas, a comparação faz todo o sentido.

Os Melleril de Nembutal conseguiram o Prémio de Originalidade do IV Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-Vous, que em edições anteriores tinha atribuído igual distinção a Mler Ife Dada, Pop Dell'Arte e Mão Morta. Da sua formação fazia parte, e espero não estar enganado, embora não tenha certeza quanto a isso, Miguel Santos, que foi durante tempos jornalista do Blitz, que mais tarde teria um projecto pessoal não muito diferente dos Melleril, chamado Hesskhé Yadalanah, e que, actualmente, trabalha na secção londrina da Fundação Calouste Gulbenkian (por esta altura realiza mais um festival de música portuguesa por aquelas paragens).

Na primeira vez que os viu, numa noite do Rock Rendez-Vous, em Dezembro de 86, na qual também tocaram Mão Morta e Rongwrong, o jornalista do Blitz António Pires descreveu os Melleril de Nembutal assim:
«Os Melleril de Nembutal (banda que deve ir buscar o nome a um produto híbrido de comprimidos para a dor de dentes e um qualquer descendente do Australopithecus Afarensis) tiveram a sorte ingrata de abrir uma noite destinada a visitas importantes naquela casa e cumpriram o seu papel: comportaram-se como putos traquinas, puseram o dedo no nariz, partiram a loiça, queixaram-se publicamente da mãe. Bem, agora a falar a sério (se seriedade é uma palavra que se pode aplicar neste caso) -- as canções dos Melleril demonstram a fragilidade técnica da banda, um muito fraco domínio dos instrumentos, mas mostram também que há ali bastante mármore de qualidade que com duas ou três marteladas e meia polidela pode dar uma bela estátua de N. Sra. das Dores. A sua música, conduzida por dois vocalistas incrivelmente kitsch e divertidos (um traz vestido um guarda-roupa completo de ceifeira alentejana e o outro apenas uns collants rendilhados), vai beber directamente à Tradição portuguesa, tanto em termos musicais como líricos, as suas referências -- o Alentejo (Janita Salomé possivelmente soaria assim se tivesse menos 20 anos), os cantos árabes, os ritmos tribais que até nem aparecem por acaso, visto alguns dos membros já terem tocado com Farinha -- juntam-se aos símbolos maiores do nosso país (os cultos católicos, a presença obsessiva da Mãe, a possessão demoníaca) para dar aos Melleril um som muito próprio e bastante prometedor.»

Como é hábito nesta rubrica, aqui fica um tema, em mp3, para ouvir: "Mamã". (Lembrem-se: como o espaço não é muito, o mp3 só pode estar disponível para download até ao próximo "Regresso ao passado", que deverá acontecer daqui a duas ou três semanas.)

domingo, 26 de outubro de 2003

O Lisboa é o maior

Na edição do Expresso deste último Sábado, o crítico João Lisboa respondeu às recentes declarações de Miguel Paes do Amaral a propósito das quotas de música portuguesa na rádio. Dizia o presidente do grupo Media Capital (rádios Comercial, Best Rock e Cidade) que não havia qualidade em quantidade suficiente na música portuguesa que permitisse às suas rádios poderem fazer playlists. Chegou a dizer que os músicos portugueses com qualidade suficiente para entrar nas suas playlists contavam-se pelas mãos dos dedos. João Lisboa respondeu-lhe com uma lista de 99 nomes, deixando o 100º ao critério do gosto de Paes do Amaral... :)
A lista podia aqui e ali levar alguns retoques e alguns reforços, mas não deixa de ser uma bela resposta:
Sérgio Godinho, GNR, Xutos & Pontapés, Vitorino, Mísia, Amélia Muge, Camané, Mler Ife Dada, Coldfinger, Janita Salomé, Três Tristes Tigres, Mão Morta, Mariza, Mafalda Arnauth, Fausto, D Mars, Brigada Victor Jara, David Fonseca, Jorge Palma, Sam The Kid, Stealing Orchestra, Kubik, José Mário Branco, Carlos do Carmo, Mind Da Gap, Cristina Branco, Pedro Moutinho, Gaiteiros de Lisboa, Sétima Legião, António Chainho, Balla, Filipa Pais, Dealema, Carlos Paredes, Bulllet, Carlos Bica, Valete, João Afonso, Pop dell'Arte, Joana Amendoeira, The Gift, Hipnotica, Jacinta, José Peixoto, Júlio Pereira, Ronda dos Quatro Caminhos, Fuse, Maria João e Mário Laginha, Bernardo Sassetti, Pedro Jóia, Realejo, Wordsong, Anabela Duarte, Chullage, Amália Rodrigues, Mundo Complexo, Moçoilas , Nuno Rebelo, José Afonso, Loopless, Anamar, Isabel Silvestre, Ala dos Namorados, Spaceboys, Né Ladeiras, Boss AC, Pedro Abrunhosa, O Ó Que Som Tem?, Trovante, Pedro Caldeira Cabral, Vozes da Rádio, Rodrigo Leão, Vai de Roda, Tim Tim por Tim Tum, Ricardo Rocha, Rádio Macau, Tetvocal, Austin, Madredeus, Dulce Pontes, Repórter Estrábico, Da Weasel, Danças Ocultas, Blind Zero, Eugénia Melo e Castro, Belle Chase Hotel, General D, Cool Hipnoise, Maria Teresa de Noronha, Mafalda Veiga, Alfredo Marceneiro, Clã, Entre Aspas, Katia Guerreiro, Luís Represas, Ana Moura, Blasted Mechanism e Micro.

Número 4, segunda noite

Seguem-se mais algumas breves noites sobre a quarta edição do Número Festival, agora sobre a segunda noite, isto é, a de ontem, Sábado.

Micro Audio Waves (4/10)
Mudaram radicalmente. A electrónica abstracta aborrecida e pouco original deu lugar, imaginem, ao electro-clash aborrecido e tudo menos original... Há um novo elemento -- uma vocalista -- a compor o palco.

Laub (6/10)
Houve momentos interessantes, em que a dupla berlinense ensaiou texturas de beats simples e respiráveis, mas mantenho o que já dizia em relação a outro concerto deles: são um projecto para ouvir em disco, sobretudo.

Señor Coconut y su Conjunto (7/10)
A juntar aos incontáveis talentos que já conhecíamos a Uwe Schmidt, ficou a conhecer-se mais um ontem: o de conseguir arranjar músicos excepcionais, originários dos mais diversos países, para o acompanhar nesta aventura pelos ritmos sul-americanos. Excelente a versão ao vivo para "Beat it" (Michael Jackson) e a derradeira "Music Non Stop" (Kraftwerk), com os músicos a evidenciarem uma vez mais todos os seus virtuosismos antes de abandonarem o palco, um por um.

Muito ficou por ver
Todo o resto do palco principal (não há qualquer paciência para ouvir Luomo depois deste último álbum e o português Expander já viria muito tarde), e a maior parte do palco secundário (Nelson Flip e Yellow fazem uma boa dupla no giradisquismo electro com MC).

Organização
Ao contrário da noite anterior, teve a decência de deixar anunciado no exterior da Gare Marítima de Alcântara que o concerto de Karl Bartos, dos Kraftwerk, já não ia acontecer. Além deste, também se ficou a saber, já no interior das instalações, que o português Mourah não estaria "preparado" para tocar naquela noite. Também ao contrário da noite anterior, havia agora papéis espalhados por todo o lado com a informação dos alinhamentos e dos horários dos espectáculos, os quais foram aparentemente respeitados sem grandes oscilações. No entanto, a contrastar com estas melhorias, a falha suprema tinha que acontecer: não havia cerveja na segunda noite. Um festival a que aderem alguns milhares de pessoas a servir apenas as vodkas e os açúcares com vodkas do principal patrocinador. Não há pachorra para isto.

sábado, 25 de outubro de 2003

Entrevista a Tom Zé (Parte 6)

(Termina aqui a publicação da entrevista que Arthur Nestrovski e Luiz Tatit, da Folha de São Paulo, fizeram a Tom Zé. Agora é aguardar o livro "Tropicalista Lenta Luta", onde constará esta mesma entrevista em formato alargado, bem como vários textos, fotografias e todas as letras do músico bahiano. A edição está para breve e vai coincidir com o lançamento do disco "Imprensa Cantada 2003" e do DVD "Jogos de Armar".)

Nestrovski - Podemos voltar um pouquinho para Irará? Queria que você contasse de novo duas histórias lindas, que já me contou: a primeira vez que você viu uma torneira e a primeira vez que viu uma lâmpada.
Nossa Senhora! Olha, imagine a torneira... Imagine que, para ter água de beber... água de cisterna a gente tinha, cisternas muito fundas lá em Irará. Essa água dava para lavar as mãos, tomar banho, lavar prato; mas para beber tinha de ir na Fonte da Nação. Então vinha o aguadeiro, que vendia aquela água potável. Chegava na sua porta com um jegue portando quatro barris na cangalha. Você comprava essa carga toda, botava numa talha; durante uma semana, tinha água para beber e para cozinhar.
Um belo dia, vou para Salvador e tia Wanda me fala: "Lave o rosto aí". Achei estranho, porque era uma pia sem água. Vacilei: "Não tem água". Ela disse: "Olhe a torneirinha aí". Girei cuidadosamente a alça superior e saiu água! Não contei nada a ela, só pensei: "Puxa vida, mas que danação!". Depois fui lá para cima. Quando ia saindo, tia Wanda me disse: "Feche". Voltei e fechei; e a fonte sumiu, não é? Isso, realmente... para o meu mundo era mágica!
Uma água que está lá longe, que você vai buscar, pega na fonte, onde está minando, carrega no jegue, bota dentro de casa para beber. Mas eis que num contrapasso, olha a água vindo por uma pequena torneira ali quietinha e pronta para o inesperado, que coisa de mundo de conto de fadas, não é? Que coisa louca, uma torneira e o que era mais ainda de conto de fadas: você fecha a torneira, acabou a fonte. A fonte desapareceu. Cadê a fonte? Não está mais aqui. A fonte foi retirada. Encanto, o Mágico de Oz passou...

Nestrovski - E a lâmpada, a mesma coisa?
A lâmpada foi na porta de seu Chaves, o farmacêutico. Não havia ainda eletricidade em Irará, porque só chegou em 1950. E isso foi em 1947, 48, coisa de João Marinho, família muito rica.
Enfim, João Marinho tinha posto luz elétrica nas casas que construiu, era gente grande em Feira de Santana. Fez casas novas, modernas, aquela coisa brasileira, arquitetura dos anos 50 e tal e botou luz elétrica. Um dia, minha mãe foi visitar a mulher do seu Chaves e, no pátio, assim, naquela primeira entrada que já é coberta, essas varandinhas da casa, ela disse: "Deixa eu lhe mostrar" e acendeu a lâmpada.
Nossa Senhora! Aquela luz sem nenhuma mancha! Porque os candeeiros nossos sempre tinham uma coisa que não estava bem, não é? A fumaça que subia do próprio candeeiro sujava o tubo. Nunca aquela luz era perfeita. Eu fiquei extasiado. Criança não se mete em conversa de adulto, então podia sentir à vontade, era uma vantagem.
Aí eu me dizia: "Meu Deus, vai morrer agora a catapora, a mula-sem-cabeça, o lobisomem" -aquelas histórias que me aterrorizavam, principalmente naquela casa enorme, com piso e forra de madeira, que estalava a noite toda, esfriando do sol, não é?
Eu passava horas sem dormir. À noite, era a hora do terror. Criança lá vai dormir às 20h e sofre a noite toda, ninguém liga se está dormindo ou não. Vai agora, com uma luz dessa não pode aparecer bicho nenhum; porque a luz do candeeiro bruxuleando, palpitando assim levemente, já era por natureza vizinha da mula-sem-cabeça, mas essa lâmpada, absolutamente branca? Nossa Senhora, aquilo foi... Até hoje ainda me lembro daquela cor, daquela cor que é uma cor que você nunca viu antes. Isso que é o inaugural, não é? A placa inaugural, a cor daquele filete lá, que agora a gente sabe que é tungstênio.

Tatit - E quando a luz elétrica chegou na cidade?
Quando botaram luz elétrica em Irará também foi uma emoção. Porque criança não tinha o que fazer. Valha-me Nossa Senhora! Um dia é um tormento de vazio. Então, tudo o que acontece na cidade é uma grande novidade. Botar luz elétrica em Irará... Você ficar na janela olhando aquele movimento lentíssimo: um dia chegava gente para cavar um buraco. Um dia botavam ali uma coisa de madeira desse tamanho, que chamavam "poste". Um dia fincavam esses postes. Um dia vinham pregando umas primeiras coisas, que futuramente vão segurar os transformadores. Depois, as linhas de três fios, da corrente de 11 mil volts. Fui aprendendo tudo, porque só vivia olhando e escutando.
O fato é que, depois de montarem tudo, consegui repetir uma ligação trifásica num nicho lá de casa e acendeu. Porque eu não tinha outra coisa para fazer: era só observar. E quando a luz estava para inaugurar na cidade -tinha ouvido dizer que ia ser ligada no sábado às 16 horas-, então tomei coragem, porque criança não falava com adulto, e perguntei ao funcionário. E ele: "É, vai ligar às 16h". E eu: "A que horas chega aqui?".
Olha, de Coração de Maria para Irará você passava meio dia viajando. Saía de manhã, chegava lá ao meio-dia. Podia demorar pouco, mas tinha que demorar alguma coisa! Quando ele me disse: "Chega na mesma hora", pensei que estivesse zombando e fechando a conversa. Já estava segregando criança. Fiquei triste, porque eu estava conseguindo respostas de um adulto, ainda mais um adulto da eletricidade, não é?

Nestrovski - Foi seu tio quem trouxe a luz?
É. Meu tio Elísio botou luz elétrica em Irará. Era prefeito de Irará. Eu estava no palanque no dia em que ele botou a luz com a roupa de caroá, muito humilhado porque a roupa do filho dele, Jarbas, era de casimira. Esses contrastes...

Número 4, primeira noite

Breve apreciação à primeira noite (ao que pude ver) do Número Festival:

Stealing Orchestra (8/10)
Muito mais roqueiros do que a última vez que os vi, muito mais orgânicos do que se apresentam em disco.

Animal Collective (7/10)
É verdade que por vezes conseguiram tornar-se o supra-sumo do aborrecimento, mas não é mentira também que conseguiram produzir dois ou três momentos de demência sónica verdadeiramente explosivos. Autênticos tribalistas que lograram trazer às cordas daquelas guitarras o espírito dos Suicide. Como dizia o meu amigo Mário Lopes, a sala de ensaio destes gajos deve ter sido construída por cima de um cemitério índio.

X-Wife (8/10)
Foi a primeira vez que os vi ao vivo. A batida certa daquele baterista chinês, que a toda a hora me fez lembrar o Dr. Avalanche, o som limpo do baixo, com um groove rock'n'rolleiro (se é que os termos se podem conciliar) irrepreensível, e os power chords e a voz lydoniana do Mr. Kitten somam um todo coeso capaz de fornecer uma óptima hora de entretenimento. Não é nenhuma novidade, obviamente, mas que interessa isso quando alguém nos põe a abanar a cabeça e o corpo e nos instiga a recuperar antigas formas de se receber um concerto?

Vi muito pouco de:
Ernesto e Guilhermo Rodrigues com Carlos Santos, Anabela Duarte Digital Quartet, twokinderman e @c+lia.

Não vi:
Derrick May (talvez tenha sido a maior explosão da noite para o público), Gabriel le Mar e outros...

Organização
Consegue sempre tornar-se, desde há quatro anos, a maior protagonista do festival. Ontem não apareceram Pole e Kristeen Young, como estavam prometidos, mas não é aí que residem os maiores problemas. Cancelamentos, mesmo que motivados por desatenção no acompanhamento de todos os pormenores como o de uma simples viagem de avião, acontecem em todos os festivais. O que se pede é um maior respeito pelo público que nem sequer é disso avisado, nem fora, nem dentro do recinto. Tal como não é avisado da hora do início de cada um dos diferentes espectáculos ou das alterações nos alinhamentos dos dois palcos. Quem é que está a tocar no palco secundário agora? Quem é que está a tocar neste palco agora? É favor perguntar, como se de um hipermercado se tratasse, a uma das pessoas que ande com um passe "staff". Ele saber-lhe-á responder. Ou então não.

terça-feira, 21 de outubro de 2003

LOGH EM LISBOA (E PORTO)


Depois de, em Março, ter feito Howe Gelb pisar pela primeira vez um palco nacional, a associação cultural "A Mula", na qual estou integrado, vai fazer o mesmo com os suecos Logh, num concerto a não perder por quem ache curiosa a ideia de uns Pixies mais intimistas ou uns Elbow a tocarem Velvet Underground. A Mula vai trazê-los, portanto, a Lisboa, embora também esteja um outro concerto previsto para o Porto, com outra organização.
Deixo, como aperitivo, uma faixa que pertence e dá título ao novo álbum dos Logh, "The Raging Sun": logh - the raging sun (mp3 com pouco mais de 2 megas).
Em breve deixarei mais detalhes.

segunda-feira, 20 de outubro de 2003

Vai abaixo, vai acima

Acho que devo um pedido de desculpas pela forma como estou a publicar a entrevista do Tom Zé à Folha de São Paulo, a qual torna difícil a sua leitura, nomeadamente a quem não visita o blogue todos os dias, já que tem de ler uma parte até baixo, subir e ler outra parte até baixo e assim sucessivamente. Mas entre isso e publicar o extenso texto logo de uma vez, achei que era melhor seguir esta opção.

Entrevista a Tom Zé (parte 5)

Tatit - Aproveitando essa história do professor, uma coisa que achei comovente naquele vídeo que a Carla Gallo fez ["Tom Zé, ou Quem Irá Botar Dinamite na Cabeça do Século?"], foi o depoimento do Koellreutter sobre aquela música sua, "Toc". Talvez tenha sido um dos últimos depoimentos lúcidos dele, porque logo depois adoeceu, não é? Estava em transe nesse depoimento. Falou que não conseguia dormir à noite tendo ouvido sua música. Você fica imaginando toda aquela experiência, de 80 e tantos anos, tudo o que ele passou, e ouvindo sua música numa emoção, mas numa emoção que eu nunca vi. Inverteu-se a história: o professor completamente extasiado, depois de tantos anos, com seu aluno. Aquilo é demais, não é?
Agora, pense, depois que saí da escola nunca imaginei voltar a receber uma aprovação daquelas pessoas. Quando a menina Carla Gallo me falou que ia mostrar o disco, eu lhe disse: "Não faça isso, o professor, coitado, está cansado, você vai aborrecê-lo com música". Ela insistiu: "Mas ele quer ouvir...".
Depois perguntei: "O que foi que ele ouviu, foi "Toc'?". "Não, ouviu o primeiro disco todo." Aí fui ouvir com o ouvido dele, para saber o que é que podia ter interessado a Koellreutter. Fui ouvir com o ouvido que eu sabia que a escola... que ainda me lembrava do que era...

Tatit - Com uma sinceridade, rapaz, ele estava falando que não conseguiu dormir à noite, depois de ter ouvido aquela música. Então, você vê, ele vem de uma outra formação completamente diferente, deu a volta, você já tinha passado uma carreira inteira, ele também, e ele agora impressionado com aquilo. Aquele depoimento eu achei uma das coisas mais... É um coroamento, assim, de toda uma vida. Nossa Senhora! Realmente aquilo, se eu tivesse juízo... faria como o Gil disse, depois do Grammy: "Agora, preciso providenciar uma boa morte".

(continua)

domingo, 19 de outubro de 2003

Entrevista a Tom Zé (parte 4)

(Continua a publicação da entrevista de Arthur Nestrovski e Luiz Tatit a Tom Zé.)

Tatit - Volta a participação dos professores, não é? É, é. Esse disco último ["Jogos de Armar"] foi dedicado aos professores por isso, não é? Porque Belmira me salvou a vida; e o professor Artur, na escola primária. Eu, numa casa bastante porão, no sentido de que tudo era escuro, o mundo não tinha esperança e tal, aquelas brigas eternas, aquele negócio terrível, aí o professor Artur falava em primavera nossa, como aquilo era delicioso! E sol, o sol é uma coisa... Aí tinha uma canção que eu me admirava, a "Canção da Árvore". Dizia assim: "O sol de dezembro lhe dá seu calor". Eu me perguntava como é que o sol dá seu calor. O sol mata as plantas de calor. Nasci vendo as plantas morrerem, o fumo não crescer, aquela situação, a cidade em miséria porque o sol acabava com tudo; mas tinha lá, do mundo civilizado: "O sol de dezembro lhe dá seu calor".
E tudo isso que ele falava de primavera, isso me encheu de luz, professor Artur, que santa coisa aquele homem lá. Um homem positivo.
No dia de eu fazer a minha prova final de aritmética, ele me fez um negócio maravilhoso. Me disse assim: "Vou fazer uma questão para você, que você não conhece o assunto..." -agora, por que ele foi fazer logo comigo, isso é que é incrível, meu Deus-, "mas, pelo que já aprendeu, você pode deduzir. Se acertar eu aumento sua nota; se errar, não diminuo. Você aceita?". Eu falei: "Aceito". Sabia que tinha passado e tal. "Aceita? Aceito."

Tatit - Não tinha nada a perder.
Lá sei eu... Pelo menos raciocinei, tive coragem. Ele deu o problema, realmente resolvi, uma coisa simples, boba. Ele aí me gabou muito. Isso foi durante muito tempo... O professor Artur me sustentava aqui com essa coisa de dizer que eu era inteligente.
Tanto que um dia eu tive uma prova de que a cabeça podia me tirar da desgraça. Carreguei isso comigo por anos. Foi assim: eu estava jogando bola. Era proibido de tomar chuvisco e de jogar bola. E estava jogando, na rua da Quixabeira. Minha mãe, olhando de certa janela lá de casa, via parte dessa rua. Eu estava no campo de visão dela num momento em que estava chuviscando e ela me viu. Aí ouvi, porque a gente ouvia de longe: "Antônio José!"

Nestrovski - Dois crimes: jogando bola e na chuva.
A chuva, então! Para a asma... Minha mãe achava que a asma era a chuva, a chuva era a tuberculose, eram os parentes de meu pai que estavam querendo me tuberculizar e tal. Muito bem. Então pensei: "Meu Deus, vou apanhar". Me encostei escondido na parede e tive a idéia: olhei os meninos e escolhi o que mais se parecia comigo. Mandei ele vestir meu calção, botei a boina (aquela boina antiga de jogador de futebol) e disse: "Carlito, desça e passe na rua de baixo, mas você tem que fazer minha mãe o ver". Tinha uma festa de rua, todo mundo estava na janela. Carlito foi inteligente, passou várias vezes. Quando entrei em casa, veio a solução maravilhosa. "Já estava preparando o cipó para lhe dar uma surra", falou minha mãe, "quando vi o menino que eu pensei que era você passando aqui". Ah, nesse dia, eu disse: "Estou salvo, tem uma coisa aqui na cabeça que pode me salvar". Minha mãe falou exatamente o que eu precisava ouvir. Nossa! Como eu fiquei com fé, com esperança.

(continua)

sábado, 18 de outubro de 2003

Entrevista a Tom Zé (parte 3)

(Continuação da excelente entrevista com Tom Zé.)

Nestrovski - Tem uma história que você me contou uma vez... O caso do dinheiro que você escondia.
Ah, do tio, bom, do tio Elias, eu roubei o dinheiro do tio Elias, roubava sempre, não é? Aí comecei a viver uma vida de terror. Eu já tinha o terror na primeira infância...

Nestrovski - Eram uns colegas seus que lhe ameaçavam, não?
Isso, isso, a minha vida toda foi roubando e sendo roubado, não é? Quando entrei na escola primária, nessa sala da professora Joselita, aconteceu um incidente, um menino maior me deu uns cascudos. Meu pai foi na casa da viúva mãe dele se queixar, gritou lá. Meu pai chamava-se Cochicho, porque gritava muito, todo mundo aceitava isso, não era briga, não era nada. E meu pai nunca brigou com ninguém. Então, o professor Artur, para agradar meu pai, me botou na classe dele.
Ora, em Irará só tinha primeiro, segundo, terceiro e quarto anos primários, sendo que o quarto ano primário era a última escola. Então, muita gente que não queria sair da escola ficava lá no quarto ano. Eu saí do primeiro, onde já era tímido, envergonhado, fui para o quarto, onde estavam aqueles malandrões, que já eram um moleques mesmo de rua, barras-pesadas, e que não queriam sair da escola. Não passavam nunca do quarto ano. Então, eu... se no primeiro já era uma dificuldade, ali foi um inferno. Até meu primo, que Deus o abençoe -de quem meu pai tinha, em 1943, comprado a tal casa nova e ele passado a morar na casa em que eu morava antes-, ele, que já estava também humilhado (e eu não sabia), me tratava mal para caramba.
Eu pensava mesmo que eu era um espúrio. Então um moleque, que sentava comigo, Deus o abençoe, o Miro, começou a fazer um jogo assim: eu pego um objeto, um livro meu, ele diz uma palavra, o livro é dele. Quando não posso dar o livro, fico devendo um cruzeiro. De vez em quando eu pegava ele, mas ele me pegava a semana toda. Aí, no fim da semana estava devendo a ele 17 mil réis; ele chegava na pastelaria do meu pai, me dava 5.000 réis para comprar um cigarro e eu dava o troco da compra a ele mais os 17 mil réis que devia, do "contrato" na escola.
No princípio, isso só metia medo a mim, depois eu vi que essa história ia se espalhando e então o terror ia ficando cada vez maior. Demorou três anos para o meu pai saber. Não tive coragem de contar dentro de casa: "Estou sendo espoliado". Então, me habituei a viver sob terror. Então, depois eu mesmo roubava na loja de meu pai.
Uma vez eu peguei o dinheiro de meu tio em Salvador. Aí meu pai foi me buscar, todo mundo já contra mim. A família ficava contra você. Primeiro, você já era um moleque nascido lá do casamento que ninguém aprovava muito, aqueles porquinhos todos nascendo naquela casa pobre e tal (antes de meu pai mudar para a casa grande, em 1943); a família de minha mãe já saindo do campesinato e indo para a universidade, família culta e tal, então, já era muito difícil aceitar a gente. Eu via tudo, não sabia por que diabos não me ensinaram a pegar num garfo para não passar tanto vexame e lá vai o diabo acontecendo.
Um dia roubei o dinheiro do tio Elias, que também me roubaram na praia, e eu não desfrutei o dinheiro, não é? Um cara mais velho tomou o dinheiro para guardar e sumiu com ele. Eu ficava com vergonha de perguntar: "Cadê o dinheiro?". Veja como eu era idiota [risos]. Aí meu pai foi chamado, no dia que descobriram que fui eu, e meu pai me disse assim: "Meu filho, levo você até a beira do abismo". Esse tipo de coisa trágica: era como se eu fosse um criminoso lá dentro de casa. Um negócio estranho, meu pai era uma pessoa que não maltratava a gente nunca. Então, essas coisas me botavam num mundo trágico. Eu não sabia nem o nome, falava "trágico" para poder me defender um pouco, nominar. Aí fugi de casa, fiz o diabo...
Até que um dia um professor de história... O professor Orlando Bahia Monteiro, ele falava baixinho, e como falava baixinho, comecei a ouvir. Ele inaugurou, naquele ano, uma tal de história interpretativa: fatores que levam a pensar que o descobrimento do Brasil foi intencional e fatores que levam a pensar que não foi intencional, os argumentos são tais e tais. Ora, uma coisa de argumento você presta atenção, é quase um júri em sua presença. Então, eu prestei atenção. Na aula seguinte, ele me chama, eu não sabia que sabia, tirei nota nove na tal da sabatina. Novamente não tomei bolo, tirei nota nove. E, então, eu comecei a estudar história porque ele me gabava. Comecei a estudar história para não negá-lo. Foi nesse ano que eu comecei a estudar (depois daquele terceiro ano que eu perdi).
Aí a professora de português, professora Belmira, um dia disse uma coisa comovente, um negócio assim: "Vocês têm que aprender português" -aquela professora miudinha, negra, sentada naquela cadeira enorme, parecia sumir ali, mas ela era de um vigor! Eu não pensava em escrever nem fazer música nem nada, mas ela disse o seguinte: "Vocês têm que aprender português. De onde é que vão sair os escritores e os poetas?".
Ora, só ter uma expectativa boa sobre mim, mesmo como coletividade, era um bálsamo. Eu fiquei com os olhos mareados lá no fundo da sala. Naturalmente me escondi, para ninguém ver. Mas aquilo me bateu que eu comecei a estudar português também, porque a mulher tinha me agradado. Tanto é que virei estudante, a partir desse ano. Voltei a estudar, equilibraram-se as coisas e tal. E aí tudo é fanático, não é? Quando voltei a estudar, voltei como cdf.

(continua)

sexta-feira, 17 de outubro de 2003

Entrevista a Tom Zé (parte 2)

(Continua a publicação da recente entrevista de Arthur Nestrovski e Luiz Tatit ao músico brasileiro Tom Zé.)

Nestrovski - Em casa não tinha ambiente para música?
Não. Minha mãe pintou durante o ginásio. Teve uma coisa com minha mãe, minha mãe Helena: ela foi a rebelde, porque lá pelo terceiro ano do ginásio disse a meu avô Pompílio que não queria mais estudar interna. Como não se podia mais botar uma moça na Bahia a não ser em Salvador e a não ser interna, ela voltou para Irará. Aí veio a casar com meu pai em 35; e eu nasci em 36.

Nestrovski - Seu pai tinha uma loja?
Tinha. Ele nasceu pobre-de-marré-desci, tinha tabuleta no princípio da vida, era marreteiro. Ganhou a sorte grande na Loteria Federal em 1920 e tantos. Então...

Luiz Tatit - Puxa! O grande prêmio da Loteria Federal?
Tudo era cósmico ou cômico lá. Meu pai tinha um bilhete premiado. Antes disso, tinha acontecido o seguinte: vocês conhecem a história no interior de enterrar pequenos potezinhos com moedas de libra esterlina? Essa era a maneira de passar heranças no interior. E o morto, para poder contar em vida, não contava aquilo a ninguém, era o mesmo que uma senha de banco, ele vinha em sonhos contar a alguém e você só podia desenterrar à meia-noite. Meu pai, que nunca teria coragem de ir à meia-noite em lugar nenhum desenterrar nada... não sei como foi parar uma herança dessas na mão dele.
Meu pai nunca teve parentes, eu nasci sabendo que ele não tinha parentes, porque os irmãos morreram tuberculosos, por pobreza, por isso, por aquilo, por aquilo outro, fome e tal. O lado de minha mãe que era a família rica. E eu na loja sabia que meu pai não tinha irmãos, que o pai dele tinha morrido há muito tempo. Aí meu pai conta que, quando ele ficou de posse do potezinho com as libras esterlinas, começaram a aparecer parentes de todo lado, gente dizendo que era sangue do sangue dele. Realmente, aqueles primos de segundo grau, primos de terceiro grau, concunhados, pode-se contrair uma parentela enorme na Bahia.
Então, um dia, meu pai resolveu dividir a herança. Isso era bem a cara dele, esse tipo de repente. "Olha, avise que eu vou dividir essa herança. Está marcado na casa de fulano de tal" -que ele não tinha casa- "tal dia, tal hora, vou levar as libras". Bom, vieram todos os interessados, deu tempo de correr os avisos, todos os interessados vieram, ele botou o pote no chão: "Uma sua, uma sua, uma minha, uma sua, uma sua, uma sua, uma minha..." -em três rodadas acabou. Ele aí chegou na porta da rua, o bilheteiro de Feira de Santana ia passando: "Seu Éverton, compra aqui, olha, uma boa centena, 0549". Ele ainda segurando as libras na mão assim: "Meu filho, não tenho dinheiro". "O que é isso aí na sua mão? Isso é dinheiro, seu Éverton, eu troco para o senhor". E ele comprou o bilhete inteiro, que foi premiado.

Tatit - Que loucura.
O homem divide a herança e já sai premiado. Então veio para Salvador receber, para saber o que se faz com um bilhete premiado. Ninguém sabia. Meu pai foi falar com Florentino Silva -eu cheguei a conhecer Florentino Silva. Eram grossistas na Bahia, uma família italiana, o que era raro por lá. Os caras estavam acostumados a tudo, naturalmente. Aí o Florentino disse: "Você dê um passeio aí, Éverton, trabalhe um pouco, que eu vou ver o que se faz. Bote o bilhete aqui". Meu pai botou o bilhete no cofre do Florentino e foi embora. Naquele tempo o mundo era de confiança.
Quando meu pai voltou, mais tarde, ele disse: "Éverton, o negócio é o seguinte: ou você entra num navio aqui no porto e vai para o Rio receber na Caixa Econômica ou tem um homem rico aqui que paga com 3%". Meu pai, que sempre teve ojeriza a viagem, recebeu 4.850 contos, botou nos bolsos, subiu em cima de um caminhão e foi para Irará. Isso era dinheiro para comprar metade da cidade.
Ele então começou a ter acesso a moças mais qualificadas, casou com a irmã da mãe de Roberto Santana, dona Mirandinha, que morreu com uma espinha que inflamou, uma coisa maluca. Aí meu pai casou com a irmã do pai de Roberto Santana, Helena Santana, irmã de Elísio Santana e Fernando Santana. Tanto que eu sou primo carnal de Roberto Santana, duas vezes.

Nestrovski - E seu pai abriu uma loja e você trabalhava no balcão, é isso? É, mas antes da loja trabalhei em padaria. Ele, uma época, largou a loja, em 40 e tantos, largou a loja e teve padaria, eu trabalhei, teve pastelaria, eu trabalhei, quando voltou para a loja, em 48, que luxo! Tudo limpinho, não sujava nada, fechava às 18h. Ah, que felicidade, trabalhava dia de sábado, porque era feira, mas que felicidade.

(continua)

quinta-feira, 16 de outubro de 2003

É maldade, mas é também irresistível


Auto-promo

Os dois outros elementos do Bailarico Sofisticado, o Baptista Bardot e o Macaco Mark, prometeram que me pagavam o jantar se eu falasse aqui do regresso do trio giradisquista, que vai acontecer hoje na EXD2003, no São Jorge. Apareçam por lá a partir das 11h. O local é bastante simpático e, felizmente para os vossos ouvidos, haverá mais boa gente a passar música.
(Quero esse jantar!)

Entrevista a Tom Zé (parte 1)

(Esta é a primeira parte de uma entrevista a Tom Zé, recentemente publicada pela Folha de São Paulo, que a minha amiga Katia Abreu gentilmente me enviou. É deliciosa esta conversa com um dos maiores músicos do Brasil.)

TOM ZÉ, QUE COMPLETOU 67 ANOS ONTEM, RELEMBRA SUA INFÂNCIA, NARRA QUANDO VIU LUZ ELÉTRICA PELA PRIMEIRA VEZ E CONTA COMO, AOS 17 ANOS, SE INTERESSOU PELO VIOLÃO

A MÚSICA QUE VEIO DE IRARÁ
por Arthur Nestrovski e Luiz Tatit


Três em ponto da tarde. Tom Zé está no sofá, passando remédio no pé. "Rapaz, tinha jurado que estaria pronto para receber vocês." Precisa tratar de uma "doença de velho": esporão de calcâneo. Se a cena fosse ensaiada, não seria melhor. O misto de intimidade e estranheza, o vocabulário ("esporão de calcâneo"), para nós tão diferente, mas ao mesmo tempo tão direto e humano, o tom irreprodutível da voz, naquele sotaque nordestino que se conhece tão bem, já estava tudo ali, mais a delicadeza e humor que marcam sempre o que ele faz. E a jura: se tinha jurado, só podia ser à Neusa, companheira de todos os momentos há mais de 30 anos, musa, parceira de trabalho e "ponto", de quem ele se declara total e amorosamente dependente. Tom Zé sem Neusa não existe.
A entrevista foi na sala. Os três sentados à volta da mesa, que Neusa cobriu com um cobertor para proteger nossas mãos do frio -só mais um exemplo da sabedoria franca e generosa do casal. Tom Zé fala fácil e fala bastante. Assume o papel de entrevistado com o mesmo empenho que demonstra em compor, cantar, escrever, cuidar dos periquitos e do jardim do prédio. Qualquer sugestão basta para ele desfiar histórias e mais histórias, sem que nenhuma deixe de ter pertinência. Mais que pertinência: singularidade.
Fora do Brasil, Tom Zé conquistou um reconhecimento que, mesmo hoje, consagrado que seja entre nós, ainda pode causar surpresa. Desde 1990, quando David Byrne produziu o CD "The Best of Tom Zé" nos EUA, ele vem sendo reverenciado em matérias de capa de publicações como o "The New York Times", "Le Monde", "The Guardian", "Village Voice", "Le Nouvel Observateur". "Mr. Zé" (pronuncia-se "Zi") entra regularmente nas listas de melhores discos da década ou até mesmo do século passado. Nada disso abala a cordialidade gentilíssima e a psicanalisada modéstia do mestre de Irará.
Tudo acaba voltando para lá, aliás. Tom Zé pode não saber para onde vai até fazer questão de não saber, para que as coisas possam acontecer e a surpresa cumpra seu papel, mas não esquece um segundo de onde vem. As histórias que ele conta sugerem outro mundo, um Brasil tão arcaico que quase não dá para imaginar. Mas que continua vivo em cada frase do cavaquinho e cada contraponto do baixo, como em cada ruído estranho dos instrumentos que ele vem inventando há anos, reanimando uma tradição da Escola de Música da Bahia, onde estudou com seus queridos professores Ernst Widmer e Hans Joachim Koellreutter.
Foram três horas de fita gravada, fora o intervalo para o lanche (musse de maracujá). Não é possível transcrever tudo; mas é quase impossível cortar. Sua fala vem pronta, só precisando daqueles ajustes mínimos de texto escrito: diminuir repetições, deixar alguns pronomes de fora, definir pontuação. Quase um paradoxo para quem se declara um compositor de "defeitos", um "falhador". Sua fala vem pronta. Quem não está pronto somos nós.
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Arthur Nestrovski é escritor e professor de literatura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). É autor de, entre outras obras, "Notas Musicais" (Publifolha).
Luiz Tatit é professor de linguística na USP e compositor.

A entrevista da qual se publica um trecho a seguir faz parte do livro "Tropicalista Lenta Luta", que será lançado no final deste mês pela Publifolha (288 págs., R$ 34). O volume traz também 25 textos do autor, fotos inéditas e todas as suas letras. Além disso, Tom Zé (1936) lança simultaneamente o CD "Imprensa Cantada 2003" e o DVD "Jogos de Armar", pela gravadora Trama.

Arthur Nestrovski - Você ouvia música em Irará?
Minha casa era geminada com o clube. No lugar onde eu dormia, a cama, eu me lembro bem, era encostada na parede do clube. Então, o bumbo do clube vivia no meu ouvido, quando tinha festa de mês em mês, tinha festa a noite toda. E eu ouvia mais alguma coisa lá das bandas que tocavam, mas o bumbo era mais presente, o bumbo era o novo útero da minha mãe, que deve ser essa a sensação, não é? Bum, o coração batendo, os dois depois batendo, o meu e o da mãe, não é? E essa é a única coisa a que se pode atribuir que eu tenho de inspiração de música.
Nunca tive nada a ver com o assunto, não é? Só aos 17 anos, o Renato, um dia, me disse: "Tom Zé, eu agora toco violão, não toco mais flauta". Eu estava indo ver as meninas no jardim, falei: "Que diabo". Foi naquele tal ano que eu tinha sido reprovado e fiquei em Irará, não fui nem estudar [em Salvador]. Era como se eu fosse abandonar os estudos. E no mês de agosto, um dia meio nublado de agosto, o Renato me disse: "Eu toco violão, e é muito mais bonito". O Renato era uns oito anos mais velho do que eu. Devo a ele o fato de ter começado a canalizar essa minha curiosidade.
Porque um dia, no campo de futebol, ele era uma dessas pessoas que gostavam de pensar coisas -na vida do interior tem muito isso-, um dia ele me disse, a gente estava perdendo para o time de Alagoinhas vergonhosamente e ele na torcida disse assim: "Você tem que jogar com a cabeça!".
Aquilo era um problema de trigonometria: jogar com a cabeça. Ninguém usava aquela metáfora. Futebol se jogava com os pés. Aí tive que repetir "jogar com a cabeça"; foi indo, foi indo até que entendi que eu devia prestar atenção em alguma coisa que nem podia imaginar o que era, no meio daqueles jogadores tão bons, que levavam a gente de aluvião.
Ele sempre me dizia uma coisa para eu pensar: "Você hoje vai torcer pelos bandidos ou pelo artista?". O artista era o mocinho, não é? E isso dava dor de cabeça. Você não podia imaginar que a pessoa pudesse torcer pelos bandidos. Era a negação da lógica. Da lógica bipolar e tal, do maniqueísmo. Ou melhor: a apresentação do maniqueísmo.
Então, um dia, ele fez essa interferência fatal na minha vida, quando me disse: "Eu não toco mais flauta, toco violão". "Puta merda!", eu falei. Estava indo ver as meninas, vi que as meninas já iam chegando, aquela aflição, mas eu tenho que ouvir Renato. Aí ouvi e ele prrramm: "Não quero outra vida, pescando no rio de Jereré...". No "de Jereré" a melodia faz dó, si, dó, ré; e o violão fazia dó, si, lá, sol. Contraponto do primeiro grau (veja como o contraponto estava na minha veia).
Esse contraponto do primeiro grau, nota contra nota, começando até com oitavas paralelas, se não me engano, esse contraponto me impressionou tanto que o mundo escureceu, as meninas desapareceram, naquela hora tudo girou, eu matei minha formiga preta. No interior dizem que, quando você mata uma formiga preta, escurece o mundo, que é o apocalipse, não é? Meu apocalipse foi ali: eu perdi completamente tudo em que estava ligado, todos os interesses momentâneos desapareceram com aquele buraco, não é? No eixo do ser. E no outro dia estava atrás de violão. Desse dia em diante nunca mais deixei de ficar atrás de música. Eu tinha 17 anos.

(continua)

quarta-feira, 15 de outubro de 2003

Comentários

Devo mudar o sistema de comentários ("juramentos")?
MUDA JÁ. Esta porcaria está sempre offline!
DEIXA ESTAR. Não é pior que os outros.
NÃO SEI QUE TE DIGA. Posso responder para a semana?

Já agora, se alguém tiver sugestões de outros serviços de comentários, faça o favor de as deixar nos actuais.

Portugueses no AMG

Armei-me em cusco e andei à procura de bandas e artistas portugueses no All Music Guide, a melhor e maior base de dados online de música. A informação não é muita, como seria de esperar, faltando muitas biografias, faltando muitos detalhes em relação a discografias, para além de uma larga série de lapsos cómicos como aquele que coloca os Santamaria como um "similar group" aos Silence 4...

Assim sendo, e no campo da pop, encontrei por lá: Mão Morta (c/bio), Sérgio Godinho, Ala dos Namorados (c/bio), Filipa Pais, Mafalda Veiga, Paulo Gonzo, Madredeus, Rodrigo Leão (c/bio), GNR (c/bio), Silence 4 (c/bio), Heavenwood, Moonspell (c/bio), Santamaria, Zealots, Doctor Frankenstein, Rui Veloso, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho (c/bio), Xutos & Pontapés (c/bio), Rádio Macau (c/bio) e Pedro Abrunhosa (c/bio). Existe ainda um ensaio sobre "portuguese rock" escrito por um tal de M. Júlio Castro, que também é o autor de algumas das biografias e críticas a discos das bandas citadas. Mas o que dizer-se de um ensaio deste género que, ao fazer a lista dos "The Ten Most Essential Portuguese Rock Albums", coloca os Taxi no segundo lugar?
No fado (é o que há mais): Amália Rodrigues (c/bio), Artur Paredes, Carlos Paredes (c/bio), António Chainho (c/bio), Alexandra, Carlos do Carmo, Mariza (c/bio), Lenita Gentil, Paulo Bragança (c/bio), Jorge Fernando (sim, o do "umbadá"), Cristina Branco (c/bio), Bévinda (c/bio), Maria Armanda, Fernando Machado Soares, António Pinto Basto, João Braga, Mísia (c/bio), António Menano, Lucília Carmo, Fernanda Maria e José Maria Nóbrega. Há ainda depois um imenso número de entradas para guitarristas, letristas e técnicos ligados ao fado, que não valia a pena estar a transcrever para aqui.
Nas tradicionais: José Afonso, Brigada Victor Jara (c/bio), Chico Ávila, Pedro Caldeira Cabral (c/bio) e Gaiteiros de Lisboa.

Quem encontrar mais, que faça o favor de deixar nos comentários.

terça-feira, 14 de outubro de 2003

Número Festival

Aproxima-se mais uma edição do Número. Num cartaz ligeiramente menos sonante que em anos anteriores, mas ainda assim bastante prometedor, a revista Número vai levar à Gare Marítima de Alcântara, em Lisboa, nomes como os de Andrew Fletcher (Depeche Mode), The Client, Derrick May, Pole, Kristeen Young, Stealing Orchestra, Animal Collective (muito bem!), X-Wife, Alva Noto, Anabela Duarte (com o seu Digital Quartet), Karl Barthos (Kraftwerk), Señor Coconut, Luomo, Laub, entre muitos outros. A não perder entre 22 e 30 de Outubro (os concertos são a 24 e 25, mas o festival estende-se, já desde a primeira edição, a outras áreas). Fonte: Blitz.

Estou a ser filmado

O Juramento sem Bandeira está a ser filmado neste momento para o tech.pt da Sic Radical.

Feira do disco alternativo usado

A partir de amanhã, quarta-feira, e até Sábado, dia 18, acontece a Primeira Feira do Disco Alternativo Usado. O evento é organizado pela Zundap e pela loja de discos Eklet, e decorre no nº 23 da Travessa Poço da Cidade, no Bairro Alto, entre as 15h00e as 24h00.

Por um punhado de espectadores ou Western Spagheti à moda de Matosinhos

Diga o que se disser sobre o estado da música portuguesa, a maior das barreiras que as novas bandas encontram por cá é a dificuldade de exposição. O concerto dos Fat Freddy, ontem no Santiago Alquimista, é disso paradigmático. Tirando seis ou sete convidados ligados à editora, estava ontem no Alquimista não mais do que meia-dúzia de espectadores para ver a banda de Matosinhos fazer o lançamento do seu álbum de estreia, "Fanfarras de Ópio". Pode-se dizer que era uma segunda-feira, é certo. Pode-se dizer que era uma banda do Norte, é certo. Pode-se dizer mil e uma coisas, mas a verdade é que nem imprensa, nem aqueles que normalmente se indignam publicamente perante o estado das coisas, marcaram presença ontem. Aqueles que, porventura, terão uma obrigação moral de mexer com as coisas, de divulgar, de fazer crer aos outros que se fazem coisas bastante interessantes por cá, não se viram no Alquimista. Parece que acaba por ser melhor para uma banda apresentar-se em showcases sem condições nas lojas de uma conhecida cadeia francesa de retalho de discos do que fazer concertos a sério, em locais com óptimas condições, como é o caso.
Os três Fat Freddy não deixaram, no entanto, abater-se e proporcionaram ao seu reduzido público uma grande noite. Numa mistela de surf-rock instrumental, paso dobles, programações e imagens hilariantes (a homenagem ao José Cid é um must), Pepito e Cª mostraram uma vez mais que fazem, ainda que em segredo apenas conhecido por uma elite privilegiada, uma dos melhores espectáculos que, de vez em quando, se podem assistir em palcos portugueses. A atitude rock'n'rolleira (já é marca do grupo a parte em que o contrabaixista se coloca em equilíbrio sobre o seu instrumento, enquanto violentamente ataca as notas de um dos "Batman Themes") e o humor completamente avariado do guitarrista Pepito dão cabo de qualquer conceito de normalidade com que se possa esperar, à partida, de um concerto dos Fat Freddy. Único problema de ontem: as mudanças de imagens e sons que acompanhavam os três músicos em palco. Muito lentas e atrapalhadas, por vezes. Mas, de resto, fica gravado na memória mais um inesquecível concerto.

(E eu juro que esgano o próximo que me aparecer à frente a dizer que não surgem bandas interessantes em Portugal, que não temos capacidade de ter nomes conhecidos lá fora para além dos habituais. Eu juro que esgano.)

segunda-feira, 13 de outubro de 2003

Imperdível

Por falar em Santiago Alquimista (ver posta anterior), vão por lá passar hoje (segunda-feira) os incríveis Fat Freddy. Este inenarrável ensemble da folia vem de Matosinhos até Lisboa apresentar o álbum de estreia, "Fanfarras de Ópio" (à venda a partir de hoje). Se querem um pouco de música armada em experimental, se querem um pouco de swing e outros números especiais de contrabaixo, e, acima de tudo, se querem passar uma noite mais divertida do que o recall californiano ou do que o embaraço do governo português com a Sofia Martins da Cruz, cancelem já os planos de cinema mais barato desta segunda-feira e apareçam no Alquimista. A SÉRIO!

Bypass: dias melhores virão, com certeza

Há uns dois meses atrás, escrevi um artigo para a revista Número, a qual deve estar prestes a sair, onde procurei explorar dois ou três pontos de vista mais ou menos generalistas sobre o estado do rock -- não todo o rock, mas aquele que mais me interessa -- em Portugal. A jeito de ilustração, e a respeito de um dos pontos de vista abordados, falava de uma hipotética banda que, por mais que trabalhasse, nunca conseguia realmente saltar da garagem ou da meia-dúzia de concertos que conseguia fazer por ano, até que acontecesse ao baixista ir fazer o Erasmus lá para fora, ao baterista arranjar um emprego das 9 às 23h que lhe impedia quaisquer aventuras no rock'n'roll, conduzindo toda esta sucessão de peripécias ao fim de uma banda que até era bem interessante.
Por coincidência, e já depois de eu ter escrito o artigo e tê-lo enviado para a redacção da Número, eis que nos meus amigos Bypass se dá a saída (temporária, parece) de dois dos seus elementos, o guitarrista-vocalista e o teclista-baixista, os quais irão estar durante o próximo ano a prosseguir os seus estudos ou os seus trabalhos no estrangeiro. No Sábado fui ver pela primeira vez a nova formação -- três novos elementos entraram para o grupo enquanto convidados -- no concerto do Santiago Alquimista, em Lisboa. Para quem, como eu, já os conhece há mais de meia-dúzia de anos, do tempo em que não eram mais do que uma mera brincadeira de liceu, ainda sob outro nome, e que os viu crescer e tornar-se um grupo com a força que eles tinham, produzindo concertos inesquecíveis -- Paredes de Coura, Rock Kastrus, Fábrica da Pólvora, Lounge (num formato mais soft), Casa das Artes, etc. --, foi muito estranho entrar no Alquimista e dar, de repente, com aquela nova configuração do palco, com alguns novos arranjos e com uma forma de tocar ainda muito longe da invulgar coesão que a formação anterior tinha. Momentos houve em que ali parecia estar uma banda completamente diferente. Outros em que as coisas já funcionavam melhor. Desilusão? Pois sim, um pouco. Mas, ao mesmo tempo, estou seguro que estes comentários vão perder a sua razão com o tempo e que, olhando para isto tudo pelo lado bom da coisa, o tombo podia ser muito pior, tanto mais sabendo o pouco tempo em que foi produzida esta remodelação.
Tudo isto para dizer que eu só queria mesmo era que a história que eu descrevia no artigo não fosse a dos Bypass. Ou então mudo de nome para Professor Karamba.

sexta-feira, 10 de outubro de 2003

Como um disco muda o nosso quotidiano

Estou a experimentar belíssimas sensações ao ouvir o novo de Plaid, "Spokes". O duo parece ter regressado ao tempo em que eram The Black Dog e àquela electrónica tipicamente inglesa (vide alguns dos primeiros discos do Aphex Twin) que vai buscar os Kraftwerk e vai mais longe do que estes foram na criação de sequências "atmosféricas" e emocionalmente arrepiantes, ao mesmo tempo que adiciona beats e breakbeats próximos da escola drum'n'bass.

Outra grande audição dos últimos dias é o álbum dos Mécanosphère. A electrónica do Benjamin Bréjon funde-se na perfeição com a voz de Adolfo Luxúria Canibal. Por vezes, sinto que gostaria de ter visto os Mão Morta a deixarem evoluir a sua vertente mais electrónica por caminhos como este. Mas quando existe um disco como este já não é, obviamente, necessário.

quarta-feira, 8 de outubro de 2003

Pega que é ladrão #1

Durante o tempo em que a Operação Drunfo foi para o ar na Voxx, eu e o meu amigo João Gonçalves tínhamos uma rubrica à qual dávamos o nome de "Onde é que eu já ouvi isto?", onde pretendíamos desmascarar os gamanços descarados que alguns dos músicos de hoje fazem a riffs, melodias ou letras de temas já ausentes daquilo a que podemos chamar de memória colectiva. Recupero agora essa rubrica, com um novo nome, para o Juramento Sem Bandeira. Para a inaugurar, deixo um caso paradigmático dos tempos que vivemos: "Bohemian Like You", dos Dandy Warhols.

Toda a gente ainda se lembra do sucesso que este tema fez há pouco tempo, por força do notável co-branding que trouxe a maior das publicidades à banda norte-americana e a uma grande operadora de comunicações móveis. Mas poucos saberão que aquele riff de guitarra que a toda hora nos aparecia na TV, na rádio, na rua, na net, no telemóvel, etc., era tudo menos original. Já em 1979, os Specials, os maiores do ska-punk inglês, tinham no seu álbum de estreia, homónimo e produzido por Elvis Costello, uma canção chamada "Little Bitch" onde está patente o mesmo riff, igual nota a nota, que tanto sucesso trouxe aos Dandy Warhols e à companhia de telemóveis. É caso para se gritar bem alto... PEGA QUE É LADRÃO!

(Como a rubrica "Pega que é ladrão" não gosta de fazer acusações sem ter os factos comprovativos ao seu lado, aqui fica o link para ouvirem o tema dos Specials: Little Bitch.)

terça-feira, 7 de outubro de 2003

Editoras saltam para o lado de cá

Há duas novas editoras independentes portuguesas com domínio na web:

COBRA: a editora formada por Miguel Pedro, António Rafael e Adolfo Luxúria Canibal, dos Mão Morta, por onde saíram "Carícias Malícias", dos próprios, e "Bliss", dos Anger, pode ser acedida em www.cobradiscos.com.

LOOP: a pequena grande editora do Rui Miguel Abreu, D-Marz e companhia continua o seu excelente trabalho na área do hip hop português, estando agora disponível através de www.looprecordings.com.

Ambas as editoras disponiblizam nestes locais os seus discos a preços inferiores àqueles que vemos nas lojas. Por isso, é aproveitar!

segunda-feira, 6 de outubro de 2003

Young Adam

Ele há bandas sonoras que tornam um filme grande sem se deixarem cair no protagonismo excessivo, sem ofuscar a nossa atenção e distraí-la do desempenho dos actores e do guião. Acontece isso com a banda sonora do filme "Young Adam", de autoria de David Byrne, que dirigiu uma série de outros músicos de Glásgua, ligados a bandas como Mogwai, Delgados ou Belle & Sebastian. O filme, realizado por David McKenzie, conta as atribulações do jovem Joe (Ewan McGregor), que encontra trabalho numa barca de transporte de carvão e demais combustíveis que faz serviço entre Glásgua e Edimburgo durante os anos 50 (?). A escassez de diálogos é complementada de forma subtil pelas tensões eróticas que se desenvolvem dentro e fora da barca ao longo de todo o filme, com a música a marcar um delicado papel -- pela finura das cordas, essencialmente, que por vezes lembra os Rachel's -- como já não se via há algum tempo no novo cinema britânico, frequentemente dado a incursões mais berrantes na música popular. Brilhante a forma como o filme encerra, com David Byrne a cantar "The Great Western Road".
Enquanto a Medeia Filmes se presta a estrear o filme nas salas portuguesas, a AnAnAnA aproveita a ocasião e faz o lançamento de "Lead Us Not Into Temptation - Music from the Film Young Adam" (Thrill Jockey, 2003), de David Byrne, e "The Last Great Wilderness" (Geographic, 2003), uma outra banda sonora que os Pastels compuseram para o anterior filme de McKenzie.

Regresso ao passado #4: Pop-Off

Continuando o hábito de fazer estas viagens ao passado em segundas-feiras intercaladas, proponho desta vez a recordação não de uma banda, como aconteceu até agora com os Ik Mux, os Crise Total e os Corpo Diplomático, mas de um programa de televisão que foi enorme no seu tempo, o Pop-Off. Ao longo de três anos, o programa da Latina Europa desempenhou um papel singular na divulgação (e no fomento) da explosão de novas bandas do início da década anterior, quebrou barreiras na comunicação televisiva e formou público. Por tudo isto deixou uma carga enorme de saudades naqueles que sentem que nunca mais se foi tão longe na televisão, que nunca mais se foi tão longe na música servida por imagens. Encontrei o texto que se segue no site do jornalista Jorge P. Pires, um dos operários de texto do programa. O mesmo serviu de entrada na Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa, dirigida pelos irmãos Luís e João Pinheiro de Almeida, e editada em 1998 pelo Círculo de Leitores:

POP-OFF

O magazine «Pop-Off» foi emitido pela RTP-2 entre Setembro de 1990 e Agosto de 1993, e foi um dos programas que marcaram a imagem e o sentido da produtora independente Latina-Europa, a par do programa infantil «Ícaro» e do magazine juvenil «Lentes de Contacto», entre outras produções. Intencionalmente dedicado à moderna música urbana portuguesa, o «Pop-Off» foi contratado pela RTP - na época em que o responsável pelo Departamento de Programas Musicais e Recreativos era José Nuno Martins - a uma nova empresa de produção televisiva, fundada em 1987 por Paulo Miguel Forte e António Saraiva, que, além da experiência recolhida junto de algumas empresas congéneres europeias, eram já responsáveis por alguma animação no panorama musical da RTP, sendo autores dos primeiros videoclips dos Madredeus e de Júlio Pereira (Paulo Miguel Forte), ou dos Mler Ife Dada (A. Saraiva). A Latina-Europa estreou no Verão de 1989 a sua primeira produção para a RTP, o magazine «Lusitânia Expresso», que além das produções originais incluía blocos de programação consignados por outras produtoras independentes europeias, com as quais a Latina-Europa estabelecera convénios. Com o «Lusitânia Expresso», a RTP abriu-se pela primeira vez à influência das estéticas alternativas em televisão, e exibiu obras paradigmáticas da estética videográfica - como as do polaco Zbig Rybczynski - intercaladas por pequenas ficções, videoclips e curtos documentários sobre a nova geração das artes nacionais, produzidos e realizados por Paulo Miguel Forte e António Saraiva. Ficaram aí registados os primeiros audiovisuais sobre autores como o fotógrafo Daniel Blaufuks, ou o poeta Al Berto. Na sequência do «Lusitânia Expresso», aclamado por críticos tão impenitentes como o decano Mário Castrim, a Latina-Europa conseguiu junto da RTP, em 1990, contratos para novas produções.

O contrato do «Pop-Off» impunha a regularidade de produção de um videoclip original por emissão. Os apresentadores eram Gimba (Eugénio Lopes) e Sofia Morais, uma adolescente que fôra vista pela primeira vez nos estúdios da Latina-Europa enquanto figurante no primeiro videoclip dos Sétima Legião, realizado por António Gutierres. Os textos - cuja elaboração foi inicialmente proposta por José Nuno Martins a João Gobern e José Matos Cristovão - eram de Rui Monteiro, que nesse ano se tornara director do semanário «Blitz». A realização, inicialmente de Paulo Miguel Forte e António Saraiva, ao longo dos meses seguintes foi progressivamente confiada a José Pinheiro e Bruno Niel Costa - o primeiro vinha de um Curso de Formação na RTP; o segundo, francês e ex-estudante universitário de Artes e Estética, com alguma experiência em video, residia há pouco tempo em Lisboa desde que se casara com uma portuguesa.

Desde o início, o programa marcou a diferença. Primeiro pela inacreditável irreverência de Gimba - que, além de apresentador, era também o entrevistador de serviço, e certa vez ofereceu a Rui Reininho 500 escudos para um corte de cabelo novo, pormenor apenas digno de registar devido à reacção gelada do cantor dos GNR. Depois pelo registo de reportagem de rua conseguido por José Pinheiro e Bruno Niel (por vezes em situações quase inacreditáveis), o qual permitia a espontaneidade neste primeiro contacto com a nova geração de músicos - até aí sobretudo mediatizados pelos jornais e pela rádio. Finalmente, pela prossecução e desenvolvimento da estética visual antes experimentada no «Lusitânia Expresso», talvez o melhor trunfo da Latina-Europa, que a dada altura era a única produtora televisiva em Lisboa a dispôr da tecnologia necessária para a obtenção de semelhantes resultados visuais e gráficos no écran televisivo.

A meio da Primavera de 1991, a emissão do videoclip «A Minha Sogra É Um Boi», do grupo Mata-Ratos (realizado por Diamantino Ferreira, que trabalhava com Paulo Miguel Forte no programa «Ícaro») provocou a ira de José Nuno Martins e dos responsáveis da RTP por esta canção incluir a frase «Chutou-me os colhões». Este episódio veio introduzir alguns factores de tensão na Latina-Europa (particularmente porque, apesar de diversos episódios do «Pop-Off» já terem sido emitidos, o contrato do programa ainda não havia sido assinado - e assim a produtora não recebera ainda qualquer pagamento), depois agravados com o mini-folhetim «Cázé Duarte», a história de um artista de subúrbio que quer brilhar na grande cidade. A história, escrita por Rui Monteiro e improvisada por Gimba e por toda a equipa da Latina-Europa (a banda de Cázé Duarte, Os Fatelas, era constituída por Elvis Veiguinha, Manuel Amaro da Costa, realizador do «Lentes de Contacto», Diamantino Ferreira e José Pinheiro) em episódios de 5 minutos por emissão, teve o seu público mas não estava prevista no contrato do programa. O posterior desentendimento entre Paulo Miguel Forte e Rui Monteiro levou à demissão deste. Desde então tornaram-se mínimas as referências às actividades da Latina-Europa nas páginas do «Blitz», embora mais tarde Gimba tenha vindo a colaborar no jornal durante um certo período. Nos tempos seguintes, os textos do programa passaram a ser escritos por Gimba, com a colaboração de Henrique Amaro (então adolescente e locutor de rádio numa estação dos arredores de Lisboa) durante dois meses.

Quando, no entanto, a RTP renovou o contrato do programa por mais um ano, Paulo Miguel Forte convidou o jornalista ( e ex-estudante de Filosofia) Jorge Pires a ocupar-se do programa - o que, para este, significava um regresso à Latina-Europa, que conhecera na fase inicial do «Lusitânia Expresso», cujos textos da primeira série escrevera a partir da oitava emissão, após desistência de Inês Pedrosa, embora o seu nome nunca fosse creditado no genérico do programa (escrevera também o guião da curta-metragem «Body-Chip», realizada por Paulo Miguel Forte e interpretada pelo modelo Ricardo Carriço no seu primeiro desempenho como actor). A sua primeira tarefa, no final de Agosto, consistiu em estruturar o guião de uma reportagem sobre o Rock Rendez-Vous, para a qual Gimba e Henrique Amaro haviam recolhido diversos depoimentos. Quase em simultâneo com Jorge Pires, entraram também para a equipa do «Pop-Off» o músico Tiago Lopes, dos Golpe de Estado (e ex-Linha Geral), que passou a assegurar a sonoplastia do programa, e João Marchante, finalista da Escola Superior de Cinema, que ali colaborou entre Setembro de 1991 e Março de 1992.

Entretanto, as alterações sentidas no meio musical português no início da década de 90 encontravam o seu veículo ideal de expressão: novas editoras independentes, edições de autor, projectos musicais ainda não publicados (como os participantes no concurso de novas bandas organizado pela Câmara Municipal de Lisboa), encontravam no «Pop-Off» um meio de expressão à sua altura. Por isso, o programa passou a preterir o contacto com as editoras em favor do relacionamento directo com os músicos, assumindo por inteiro a sua dupla estratégia: adquirir um estatuto sólido de impulsionador da cena musical, enquanto revelava a actualidade de um mercado discográfico nacional cujos limites se iam progressivamente alargando. O programa introduziu igualmente as formas e a estética de um programa completamente alternativo, que pulverizava os géneros musicais e não se coibia de incluir uma entrevista com o acordeonista Quim Barreiros (no que foi, aliás, pioneiro na televisão portuguesa) ao lado de um videoclip com uma nova e absolutamente desconhecida banda de heavy-metal portuguesa, ou apontamentos de reportagem sobre as profissões adjacentes: os «roadies», os produtores, os radialistas, etc. Além dos textos, as entrevistas e reportagens do programa passaram a ser feitas por Jorge Pires, e o papel da apresentadora Sofia Morais foi reconduzido no sentido da criação de uma figura virtual, puramente videográfica - mas, graças aos excelentes dotes de interpretação de Sofia Morais, capaz de assumir diferentes personalidades e formas. A ideia foi aperfeiçoada a partir da Primavera de 1992, com a caracterização de Alda Salavisa e a colaboração de Cristina Duarte, que passou a assegurar o «styling».

Em Fevereiro de 1992, José Pinheiro interrompeu por algumas semanas as suas funções no «Pop-Off» para acompanhar a romântica viagem até Timor de um navio curiosamente chamado «Lusitânia Expresso»; as muitas horas de reportagem que então obteve permanecem até hoje inéditas. Em Maio desse ano, Bruno Niel Costa abandonou a Latina-Europa para integrar temporariamente o Departamento de Promoções da RTP. O seu último trabalho para o «Pop-Off» foi «B.A.D.», um videoclip dos Zirkus Maximus (uma efémera banda da Azambuja) que foi parcialmente filmado junto dos altos fornos da Siderurgia Nacional e contou com a colaboração da bailarina Mónica Lapa e do actor Duarte Barrilaro Ruas. António Forte, ex-baterista dos Emílio e a Tribo do Rum e dos Osso Exótico, e também ex-assistente de realização do «Ícaro» (que entretanto terminara) juntou-se então à equipa do «Pop-Off» - a par de João Pedro Gomes, ex-estudante da Escola António Arroio e também radialista numa estação dos arredores de Lisboa, que passou a ser o infografista do programa, em substituição do original Zeb.

Ao longo do tempo, cada alteração na equipa do programa teve consequências mais ou menos subtis. A entrada de João Pedro Gomes ocorreu em Junho de 1992, e ficou assinalada pela elaboração de uma «emissão em brasileiro» (onde a voz de João Pedro dobrava a de Sofia Morais, e que foi parcialmente filmada no lote de terreno deixado vazio após a demolição do Rock Rendez-Vous), com que a equipa decidiu saudar a simultânea abertura dos trabalhos da conferência mundial ECO-92 no Rio de Janeiro. Um segundo programa dedicado à ECO-92 foi, na semana seguinte, filmado junto às poluídas margens do rio Trancão, perto de Moscavide. Esta emissão praticamente inaugurou a fase dos «programas de tema», com cuja construção a equipa se ocupou ao longo do Verão e do Outono seguintes: um «Pop-Off policial», um «Pop-Off Side» (em ‘blague’ aos programas desportivos da RTP), um «Pop-Off Star Trek», um «Pop-Off dos Milhões» (‘blague’ aos concursos televisivos), ou um «Pop-Off no ano 2012» são apenas alguns exemplos. A entrada para a equipa de Nuno Tudela, estagiário do Curso Superior de Cinema do Conservatório, foi assinalada pela criação de um «Pop-Off Twin Peaks», para o qual os textos de Jorge Pires foram reescritos com as sílabas em ordem inversa, para que Sofia Morais os lesse nessas condições. A gravação video de Sofia Morais foi depois lida em retrocesso e copiada para um segundo gravador video, de modo a que o estranho resultado final da apresentação se assemelhasse à fala do anão na popular série televisiva realizada por David Lynch. O assistente de realização Jesus Roque, que viria mais tarde a gozar de grande destaque como «o figurante desconhecido», foi também contratado nesta época, bem como Maria João Wolmar, que veio substituir Teresa Albuquerque na assistência de produção.

No início de Setembro, por consulta ocasional de uma revista que continha a programação da RTP-Internacional (que estreara as suas emissões no início de Agosto desse ano), a equipa descobriu que o programa estava a ser emitido semanalmente via satélite, embora num horário diferente (aos domingos à tarde, de acordo com o tempo médio de Greenwich, e era actualmente visto na Madeira e nos Açores.

Faltavam duas semanas para o início das emissões regulares da estação privada SIC quando o «Pop-Off» celebrou a sua centésima emissão, com um programa dos mais arrojados, que incluía uma extensa entrevista com o vocalista dos Ena Pá 2000, Manuel João Vieira. O delírio valeu à equipa uma reportagem do «Diário de Notícias», porque uma jornalista vira a emissão às 2 e meia da manhã (o horário para que a RTP remetera o programa) e ficara curiosa, porque pensava tratar-se de uma estação de televisão pirata. Quando publicada, a reportagem acabaria porém por divulgar diversa informação truncada. Na noite anterior à estreia da SIC, o «Pop-Off» teve uma das suas mais radicais emissões, iniciada com uma mira técnica igual à daquela estação, mas alterada de forma a ler-se «BIC», e dedicada a Nossa Senhora de Fátima: Sofia Morais, nesse papel, voava como o Super-Homem, calçava uns ténis com meias às riscas (como as da Pippi das Meias Altas) e dava conselhos a dois pastorinhos que nunca se fartavam de ver televisão debaixo de uma azinheira, interpretados por João Pedro Gomes e Jesus Roque.

Estimulado pelo facto de estar a ser difundido por satélite, foi neste período que o «Pop-Off» se tornou mais declaradamente semiótico e experimentalista, manipulando e subvertendo os códigos normais de significado, e procurando levar ao ridículo a ideia de que a comunicação televisiva atinge as pessoas no seu último reduto - o lar - e, graças a alguns processos que não cabe aqui enumerar, em regra provoca nelas um efeito perverso: o de ser sucessivamente interpretada como "verdadeira". Se alguma coisa aparece na televisão, não pode ser mentira - e assim, a par de videoclips, reportagens e entrevistas no mais puro estilo realista (todas as entrevistas e reportagens do programa sempre foram feitas «live on tape» e ao primeiro take) e elementos declaradamente falsos e erróneos. Um dos momentos mais apreciados pela equipa foi a produção de um videoclip dos "Fake No More" (com letra de Jorge Pires, música de Tiago Lopes e vocalização de João Pedro Gomes), uma banda inexistente que reunia quase todos os pequenos defeitos e «clichés» das bandas portuguesas. Outro momento célebre aconteceu no programa 110 (emitido a 25.11.92), concebido como um filme mudo e antigo, com intertítulos, saltos e riscos na película.

Quando, em Novembro de 1992, a RTP difundiu, num noticiário da hora de almoço, as primeiras imagens do massacre no cemitério de Santa Cruz, em Dili, a equipa do programa reuniu-se de emergência e concebeu uma resposta imediata, que surgiu na forma de videoclip, com música de Tiago Lopes e letra do rapper General D, naquela que foi a sua segunda intervenção televisiva (a primeira ocorreca exactamente durante uma reportagem do programa com os «rappers» de Miraflores. Oferecido ao noticiário da RTP, o clip seria recusado com uma desculpa fraca, de que o jornalista João Dias Miguel deu conta em notícia publicada no matutino «Público».

Num texto escrito por Jorge Pires e divulgado pela equipa por altura da sua centésima edição, proclamava-se que «Quantos aos lançamentos editoriais das grandes editoras, habituámo-nos a falar com os músicos antes e durante o seu trabalho. Não depois. O princípio do realismo fez-nos preferir que as pessoas falem francamente daquilo que tentam construir, e dos problemas que defrontam para o fazer. Existem outros programas de televisão onde se pode fazer melhor figura e vender mais discos. É possível manter e amplificar a ficção de que existe um país cheio de músicos, que estão cheios de ideias novas. É possível oferecer liberdade de expressão aos músicos portugueses; o Pop-Off nunca se limitou a ser um programa "de rock"; é um programa de música. É possível oferecer aos espectadores a visão do que acontece nas grandes noites dos pequenos concertos, e descobrir o que é que anima toda esta gente que deseja ser músico e ter uma banda. Se tudo isto está a acontecer na televisão, é porque é verdade». Todo este jogo com o sentido e o significado de um programa sobre música moderna portuguesa ajudou a criar códigos e uma identidade própria, bem como um público de culto, que anos depois ainda recordava os melhores momentos. Para isso também contribuiu o lado "verdadeiro" do programa: em 1992/1993 o POP-OFF acompanhou várias histórias com meses de antecedência em relação à imprensa (casos dos álbuns dos Xutos e Pontapés e dos Zero), efectuou várias incursões em reportagem no «país real» (Açores, Porto, Vila do Conde, Ovar, Braga, Évora e Viseu), e conseguiu garantir um razoável equilíbrio na informação sobre as chamadas "bandas de primeira linha" e sobre os grupos completamente desconhecidos do grande público. Ao mesmo tempo, a temática nem sempre se concentrou exclusivamente na música: entrevistaram-se escritores, autores de banda desenhada, editores, radialistas, engenheiros de som, produtores de espectáculos, "roadies", "managers" e, por diversas vezes, público anónimo. Foram várias as bandas reveladas pelo programa, e que graças a ele conseguiram contratos para edição discográfica, quando as editoras perceberam que determinadas canções já tinham um público conhecedor, que as entoava durante os concertos de bandas que não haviam gravado ainda nenhum disco - citem-se os casos dos Ramp, dos LX-90 e dos Braindead.

No seu último ano, e apesar de seleccionado para a RTP-Internacional, o «Pop-Off» não voltou a beneficiar de um contrato de produção anual; em vez disso, teve contratos de 13 episódios, que foram sucessivamente renovados até findarem em Agosto de 1993. Ao longo dos seus três anos de emissão, o «Pop-Off» coleccionou um bonito livro de recortes, repleto de críticas e referências elogiosas na imprensa mas que, na maior parte das vezes, eram completamente alheios ao contexto e aos objectivos da equipa do programa. Melhores momentos: as referências elogiosas feitas pela revista alemã "Metronom", e a reportagem feita em Fevereiro de 1992 pelo programa "Boomerang" da FR3 (Marselha), cuja equipa se deslocou ao estúdio da Latina-Europa e acompanhou um dia na vida do programa.

O programa 133, e último, foi emitido em Agosto de 1993. Era construído como uma ‘blague’ em torno do filme «Terminator 2», com Arnold Schwarzenegger, e, no termo de uma aventura de acção com a esfuziante Sofia Morais e os diversos elementos da equipa do programa (alguns disfarçados de Ninjas para um breve apontamento de «filme kung-fu» - uma das ideias, neste caso de Tiago Lopes, que nunca se concretizaram), o andróide maligno era derrotado. As suas últimas palavras: «I’ll be back». Desde então, a equipa do programa não voltou a reunir-se.

José Pinheiro - seguramente o maior autor português de videoclips, e responsável por boa parte da imagem da música popular portuguesa na entrada dos anos 90 - prosseguiu a sua carreira como realizador video, bem como Bruno Niel e António Forte, tendo estes últimos, em épocas diferentes, adaptado a linguagem visual ensaiada no «Pop-Off» ao magazine televisivo de moda «86-60-86». Sofia Morais prosseguiu carreira como locutora da estação de rádio XFM, tendo feito aparições esporádicas em programas da RTP. Gimba tornou-se posteriormente um dos fundadores dos Irmãos Catita, e em 1997 publicou o seu primeiro trabalho em nome próprio, após duas décadas de colaboração com os mais diversos grupos e projectos musicais.

domingo, 5 de outubro de 2003

Satanás em Coimbra

Não resisti a citar aqui o texto excrito por Silva Resende (lembram-se dele enquanto presidente da FPF nos anos 80?) no Jornal O Dia. Fica um agradecimento ao meu amigo Luís G. por ter sido através dele -- e de uma posta sua no forum sons -- que descobri este belo naco de prosa. Ora atentai nas sábias palavras do senhor Silva Resende:

SATANÁS EM COIMBRA...
artigo de Antero da Silva Resende

Desde os seus começos na década de cinquenta que o movimento da música "rock" era suspeito de práticas ocultistas e pretensos misticismos orientais. Foi, no entanto com Elvis Presley que tomou, à laia de preparação imoral, o pleno significado de um rito animalesco e libidinoso, quando o nome da música foi confessadamente adaptado a práticas sexuais dentro dos automóveis e se compôs uma expressão retirada do calão americano.

"Rock'n'roll" passou a ser sinónimo de "fornicação", e Elvis Presley fazia essa exibição nos palcos com movimentos corporais adequados, a tal ponto que na gíria dos frequentadores o seu nome aparecia mudado para "Elvis Pelvis". Depois do seu suicídio, provocado pela sobredose de droga, em Agosto de 1977, apesar da degradação da sua imagem, os discos passaram a vender-se a ritmo alucinante entre a juventude, e o próprio "rock" não cessou de multiplicar em formas cada vez mais provocantes e selváticas: "hard rock", "heavy rock", "punk rock", "acid rock", todos eles com mensagens dirigidas à prostituição, à violência e à droga, e todos assentes numa tal intensidade de ruído, a mais de 100 decibéis, que além da destruição do cérebro excitam as pulsões sexuais - este efeito ampliado pela "stroboscopia", isto é, a alternância da escuridão e da luz intensa a ritmos frenéticos.

Coube aos "Beatles", por quem tantos amantes de música vertem prantos saudosos, a iniciativa confessa de integrar no "rock" o culto de Satanás, com o número designado por "Norwegian Wood", integrado no álbum "Rubber Soul". Isto inspirou um filme para a TV, chamado "Magical Mystery Tour", em 1968; e ainda o "Devil's White Album" (Álbum Branco do Diabo), cujo nome não deixa dúvidas sobre a sua natureza e seus fins: propagar o evangelho de Satanás.

Só muito mais tarde e já em nossos dias é que cientificamente se descobriu que tudo isto mais não era do que uma forma subtil de influenciar o psiquismo dos ouvintes ferindo-os abaixo do nível da consciência.

As mensagens subliminares que contêm obedecem a este catálogo, conforme apurou de ciência certa o padre Jean-Paul Regimbal, de Quebec, a quem se deve a denúncia desta praga diabólica que se infiltrou no seio da sociedade do nosso tempo e muito particularmente no seio da juventude:
- perversão sexual sob todas as formas;
- apelo à revolta contra a ordem estabelecida;
- incitamento ao suicídio;
- apelo à violência e ao crime de morte;
- consagração a Satanás.

Não precisamos de demonstrar os efeitos desta vaga demoníaca porque eles se sucedem na Humanidade, desde a perversão moral que deixa a perder de vista a aliança dos prostíbulos e das cloacas, até aos suicídios colectivos que rivalizam com as grandes tragédias que enlutam a Humanidade.

Aliás, o "beatle" mais responsável pelas músicas do grupo, acabou assassinado num café de Nova Iorque, às mãos de um satanista tornado instrumento da seita, como "punição" contra a exibição torpíssima desse "beatle" num palco de teatro a manter relações com a mulher no dia do casamento...

Como refere o mesmo autor, os temas das canções nunca se afastam desse modelo obrigatório: rebelião contra os pais, contra a sociedade e contra tudo o que existe; libertação de todos os instintos sexuais; apelo à anarquia para fazer triunfar no mundo o reino universal de Satanás.

Na verdade, porém, o processo ainda estava no começo. Em 1970 emergiam do anonimato os "Rolling Stones", que logo suplantaram os "Beatles" e sob o impulso de um sujeito chamado Mick Jagger, tomaram uma orientação ainda mais abertamente satânica, como se pode ver dos seus hinos a Satanás:
- Sympathy for Devil (Simpatia pelo Diabo);
- Dancing with Mister D (Dansemos com o senhor Diabo);
- To their Satanic Majesties (A Suas Majestades Satânicas).

Para ilustrar o programa, estes concertos contam no seu activo com violências inauditas, não raro mortos e feridos, e um clima de exaltação confundível com a loucura.

Lê-se na Enciclopédia Rock: "príncipes das trevas e campeões da música mais provocante, os Rolling Stones confirmaram desde 1967, a sua reputação luciferiana, com o trecho "passemos a noite juntos", que foi censurado devido às referências sexuais provocantes. Os incidentes escandalosos que sobrevieram levaram Jagger à prisão.

Todas as enormes tragédias que enlutam as sociedades modernas e que deixam de boca aberta aqueles mesmos que de boa fé duvidam da existência do Maligno, tantas vezes mencionado por Cristo que lhe chamou o "homicida desde o princípio", não deixaram de subir de tom à custa de outros grupos rivais e concorrentes dos "Rolling Stones", nomeadamente os "Pink Floyd" e os "Black Sabbath", tendo todos despertado uma "elite" de possessos diabólicos em que avulta o sempre falado Mick Jagger, que foi iniciado na entrega a Satanás por duas bruxas especialistas de práticas de magia: Marianne Faithfull e Anita Pallemberg.

Este último aspecto bem como os títulos de alguns trechos, merecem um esclarecimento suplementar.

Satanás não tem, por si mesmo, o poder de penetrar no santuário da consciência das pessoas. "De intimis solus Deus" - já assim se consagrava na filosofia e na teologia. Só Deus pode penetrar no recesso das almas.

Mas o homem pode consagrar-se, não apenas a Deus, mas por devoção que espelha a sua crença e a sua confiança na protecção do Céu, à Virgem Santíssima ou aos Santos Anjos, por exemplo, dando-lhes assim o poder da pertença, o oferecimento de todas as suas faculdades, como, aliás, consta de uma fórmula ainda muito em voga entre nós. Essa livre disposição que pode chegar à entrega total no acto de consagração é igualmente eficaz na consagração a Satanás, que desde então passa a comandar os pensamentos, as palavras e as obras dos que se lhe ofereceram. É de pensar que estes infelizes caídos nas malhas do Mal, nunca antes tinham suspeitado do acto de consagração, praticado no culto cristão. Mas o Diabo aspira ao senhorio do mundo e à conquista da Humanidade, nem que seja a macaquear a obra divina. É certamente de inspiração demoníaca esta consagração ao Anjo Caído que perpassa com suspeita insistência nos álbuns do "rock".

Significativa vem a ser também a caminhada dos portugueses até Coimbra onde acabam de aterrar os "Rolling Stones" e os seus velhinhos já a cair da tripeça, com ar esquálido e olhares vidrados pelo frio da vida que lhes anoitece.

A multidão e o delírio da comunicação social espelham os estragos morais e intelectuais já feitos no seio da nossa população, nomeadamente das gerações novas que podemos considerar em parte maior completamente perdidas. A passagem triunfal dos "Rolling Stones" é a contraprova do apodrecimento moral de populações de jovens e menos jovens tocados do vírus satânico. Almas viradas do avesso, buscam a felicidade nas emanações pantanosas dos vícios mais abjectos. Escolhem como ídolos indivíduos que se despojaram, nos braços do Diabo, de toda a dignidade humana. E ocupam os cérebros derrancados com mensagens subliminares que os impulsionam até às regiões desoladas da consciência, onde deixou de pulsar o afecto, a aspiração do belo, a esperança da luz e da verdade.


P.S.: a substância deste escrito não é nova. Já mais do que uma vez tratei este assunto em O DIA. Pretexto novo é esta visita dos "Rolling" e o alvoroço causado numa sociedade que vai à desfilada a caminho dos abismos.

quinta-feira, 2 de outubro de 2003

Fartura de concertos no regresso às aulas

Não há fome que não dê em fartura. Para acabar de uma só talhada com os queixumes derivados da escassez de concertos de grupos estrangeiros por cá, eis que surge, prolongada até pelo menos ao final do ano, uma excelente temporada de espectáculos. Tinham todo o fundamento esses queixumes: afinal, e tirando os festivais dos patrocinadores Verão para os quais já falta a paciência, o que aconteceu de interessante nos últimos três ou quatro meses? E no Paradise Garage, acabaram-se os bons concertos? É o Lux que vai retomar o protagonismo?
Depois dos Fall, no passado fim-de-semana, depois da Rosie Thomas ontem (e hoje no Porto), vamos ter aí os regressos do Will Oldham (17/10), John Cale (24 e 24/10), Chicks on Speed (30 e 31/10), Blur e Elbow (5/11) e Peaches (6 e 26/12). Nas estreias, aguardamos com ansiedade os Liars (24 e 25/11). E em Aveiro vai acontecer um festival de músicas do mundo com um dos melhores cartazes dos últimos anos.
Haja dinheiro para tudo isto!

Há mais uma festa no Restaurante Panorâmico

Depois do arrebatador "Super Panorama", em que a Experimenta Design deu a conhecer esse fascinante local para festas e concertos escondido na floresta de Monsanto, em Lisboa, fiquem a saber que o Restaurante Panorâmico vai voltar a ser usado em breve, possivelmente ainda este mês. Não conheço mais detalhes, por enquanto, mas prometo voltar à carga assim que houver nomes.

quarta-feira, 1 de outubro de 2003

Histórias da Musicnet. Parte 2: A internet?

Recuemos cinco anos no tempo. Em 1998, já toda a gente falava da internet. Para uns, era um milagre que justificava desmesurados investimentos financeiros. Para outros, era o descalabro moral da civilização moderna, era o sexo, era a pirataria, era o fim das relações inter-pessoais em favor das frias salas de chat. Quase não havia o meio termo.
Não sei exactamente porque razão, mas no meio musical português, quase todos os seus agentes encaixavam na última categoria. Era provavelmente pelos receios da pirataria, embora na altura a coisa não tivesse assumido os contornos que depois veio a ganhar com o Napster, o AudioGalaxy, ou mais recentemente, o Kazaa ou o Soulseek. De qualquer das formas, em 1998, a Musicnet era então vista pela generalidade das editoras, das promotoras de concertos e até pelos próprios músicos, como um projecto feito por maluquinhos, dirigido a maluquinhos. E, cuidado, maluquinhos perigosos! Havia até, para ilustrar com um exemplo, uma editora internacional bem conhecida -- a 4AD -- que dava ordens expressas ao seu distribuidor nacional -- a MVM -- para não enviar promos seus aos maluquinhos dos sites de música, mesmo que fossem para estes poderem publicar meras críticas aos discos...
Aos poucos e poucos, as coisas foram mudando. Pouco tempo depois, os maluquinhos dos sites -- começaram a aparecer outros, com posições institucionais mais fortes -- já eram convidados para irem a esta ou aquela apresentação ou para cobrirem este ou aquele concerto. Já havia quem sugerisse que se colocasse um excerto de um mp3 -- ou até mesmo o mp3 inteiro -- do disco daquela nova banda que estava a aparecer e à qual convinha dar a maior visibilidade possível. Já nos imploravam -- é a palavra certa -- para fazer aquela entrevista com aquele artista. Um conhecido chefe de promotoção e marketing já propunha que lhe dessemos destaque privilegiado e permanente, em troca de material multimédia a que poucos tinham acesso.
De repente, os grandes agentes do meio descobriam que tinham nos meios online uma via mais barata e quiçá mais eficiente de de fazerem a promoção das suas mercadorias e os maluquinhos dos sites já não tinham que repetir a mesma lenga-lenga de sempre quando com eles falavam ao telefone. Sim, telefone, pois na altura ainda eram poucos aqueles que tinham mail...
Em 1999, um ano depois, o panorama era já, portanto, bastante diferente. No entanto, há coisas que nunca mudam: os Metallica, no T99, impediam a acreditação para o seu concerto de fotógrafos de orgãos online... (haverá banda mais ciberó-foba à face da Terra?)

Saem umas estatísticas para a mesa do canto

Top dos "referrers" (desde o início):
forumsons.com
acorneta.blogspot.com
janela-indiscreta.com
cronicasdaterra.blogspot.com
google.com

LIARS! LIARS! LIARS! LIARS!

Vêm aí os concertos do ano! Os nova-iorquinos Liars vão estar finalmente em Portugal e os engraçadinhos que os viram no início deste ano (?) em Londres vão agora finalmente poder deixar de meter inveja.
LIARS + X-WIFE - 24 de Novembro - Porto, Sá da Bandeira
LIARS - 25 de Novembro - Lisboa, Lux
Os bilhetes vão ser postos à venda nos próximos dias, aos preços de 15 (compra antecipada) e 17 euros (próprio dia).

We can win, we can win, we can win. Can you hear us? Can you hear us? Can you hear us? CAN YOU HEAR US?