terça-feira, 2 de novembro de 2004

Um palco português (breves notas de optimismo)

Já aqui defendi a tese -- e não encontrei ainda razões para ter outra opinião -- de que a indústria do disco, conforme a conhecemos, vai acabar e que o futuro da música passará essencialmente pelos palcos. De facto, todos os dias nos chegam exemplos de editoras (a médio prazo chamar-lhes-emos "antigas editoras") que despendem mais tempo e mais recursos na carreira dos seus artistas, particularmente nas digressões dos mesmos. Ao mesmo tempo, assistimos ao curioso facto de ver cada vez mais gente nos concertos, num tempo em que cada vez menos discos são vendidos. Se um disco se copia e se partilha com a maior das facilidades, impossíveis serão, por outro lado, as probabilidades de se duplicar a míriade de sensações que se obtém de um concerto, por definição único. Não pretendo alongar-me sobre estas evidências, já anteriormente debatidas, mas proponho a reflexão do assunto, tendo como pano de fundo a evolução do mercado "live" em Portugal, nos últimos tempos.

Por mais que aumentem o número de concertos ou o número de festivais de Verão, o preço dos bilhetes ou a repetição de determinados artistas, ficamos sempre com a ideia, perante as lotações esgotadas que vão acontecendo, que, com um bom cartaz e/ou uma boa promoção, quase tudo é possível. Mas estaremos a falar de algo realmente significativo ou é apenas conversa para inglês ver? Não. Se nos detivermos um pouco para reflectir na agenda de concertos deste ano de 2004, podemos contemplar o imenso salto que foi dado. Senão, vejamos:

No circuito de contornos mais "underground", já cá tivemos este ano nomes como os de Zu, Sole, Mono, Numbers, Deadbeat, Dat Politics, Xiu Xiu (mais do que uma vez), Damo Suzuki, Califone, Calexico, Steve MacKay, Liars, Six Organs of Admittance (mais do que uma vez), Panda Bear, Rosie Thomas, Devendra Banhart, Alias, The Cheese, Kid606, Gang Gang Dance, Elysian Fields, etc. Tudo isto e muito mais em dois ou três espaços (ZDB, Maus Hábitos, Alquimista ou O Meu Mercedes é Maior que o Teu), é certo, mas com perspectivas de se verem acompanhados de outras alternativas em breve. A incidência natural ocorre sobre Lisboa e Porto, mas aqui e ali vão aparecendo exemplos de digressões por outras cidades, como é o caso de Leiria, da Guarda ou da Feira, onde se realizou o "Festival para Gente Sentada".

Num circuito a meio caminho entre o "undergroud" e o "mainstream", muitos rejubilarão com a vinda dos Mogwai, dos Lambchop, dos Fantômas, dos Pixies, do Rufus Wainwright, do Nick Cave e de mais umas duas boas mãos cheias de nomes que tenham enchido a Aula Magna, o CCB ou o Coliseu do Porto.

No mainstream, são também inúmeros os casos que atestam a apetência do público por ver música (e todo o espectáculo e toda a histeria social promovida pelas marcas comerciais, é certo) em palco. Dos festivais de Verão da Música no Coração (a única má notícia pode ser o fim do Festival de Vilar de Mouros) ao Rock in Rio, de Phil Collins a Madonna, de Caetano Veloso a Maria Rita, encontramos grandes produções, elevadas ao direito de notícias de abertura dos jornais televisivos da hora de jantar e responsáveis pela deslocação de numerosas multidões a espaços como o Pavilhão Atlântico, em Lisboa.

Tematicamente, tivemos (e vamos continuar a ter) propostas de qualidade às quais o público acorre em grandes números redondos. No domínio das músicas do mundo, por exemplo, há a referir o cada vez maior festival de Sines ou, mais recatado por natureza, o Sons em Trânsito de Aveiro (a realizar em breve), para além de uma cada vez maior diversidade de pequenos festivais locais, sem esquecer o caso de sucesso que foi (e promete voltar a ser no próximo mês) a canadiadana Lhasa (não esquecer também o regresso de Kimmo Pohjonen). Nas electrónicas, mantém-se, com algum fausto programativo (não tanto na música, mas nas actividades paralelas) o Número Festival, enquanto outras entidades, como a Matéria Prima, do Porto, ou a Journeys, de Lisboa, mantém programações regulares (se isto continua a acontecer numa época em que toda a gente redescobriu o rock, é caso para dizer que "é obra").

E na música portuguesa? Como estamos? Os Xutos encheram o Pavilhão Atlântico. Os Mão Morta repetem o sucesso da "Carícias Malícias Tour", com as actuais "Sessões de Outono", desdobrando-se em inúmeros espectáculos todos os fins-de-semana. Vários outros grupos, como os X-Wife, os Texabilly Rockers, os Sloppy Joe ou os Loto seguem-lhes as pisadas e fazem ocasionalmente os cartazes de pequenos bares espalhados pelo país. Em Lisboa, nota-se, ainda que muito ligeiramente, uma certa apetência crescente por concertos de novas bandas. E as salas pequenas, fundamentais para a vitalização deste circuito? Em Lisboa, a ZDB parece ter já consolidado a sua acção, com duas ou mais noites de música ao vivo, de referência, a acontecerem todas as semanas, factor essencial para a fixação e, consequentemente, educação de novos públicos. O Santiago Alquimista esforça-se por oferecer uma alternativa a outro nível e promete regressar em força após neste final de ano. Novos espaços, como o Atmosferas, vão aparecendo. No Porto, a oferta parece ser maior, com os mui activos Maus Hábitos, Mercedes ou Hard Club, aos quais se juntará brevemente o novíssimo Passos Manuel. Em Coimbra, o Le Son promete voltar a agitar as águas. Por todo o país parece assistir-se ao reaparecimento de alguns bares, a maior parte deles acabados em "...u's" (Kastru's, Santu's, Ministrus, etc.), com música ao vivo para as populações jovens locais. E, na maior parte das vezes, isto está a acontecer, lembrem-se, sem os viciosos apoios das câmaras...

A conclusão óbvia que se tira deste breve retrato é que houve um salto importante na cultura da "live music". Quanto tempo vai durar este "boom" é uma pergunta difícil, mas o que mais importa agora é saber aproveitar a onda e esquecer, de uma vez por todas, o velho e habitual miserabilismo nacional, já hoje, num palco perto de si.

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