terça-feira, 30 de setembro de 2003

Música maquinal

No passado Domingo, teve lugar no café do S. Jorge (agora chama-se Lounge Space) um debate sobre o futuro do uso da música, por ocasião da Experimenta Design 2003, onde o principal orador era o músico, jornalista, musicólogo, blablabla, David Toop, coadjuvado pelos portugueses João Paulo Feliciano e António Contador. Não trago aqui a generalidade da conversa, até porque cheguei demasiado tarde, mas gostaria de reflectir aqui sobre um assunto que ali foi abordado. Podia tê-lo feito lá, e estive quase a fazê-lo, mas a participação estava tão animada que nem sequer arrisquei pedir para falar. Mas vamos a factos concretos. Enquanto se falava sobre a popularização e universalização (por mais sofistas que sejam estes termos, mas isso é outra história) dos meios tecnológicos ao serviço da música ou do ponto a que estes próprios meios chegaram e do alcance que permitem ao potencial criador musical, um dos indivíduos da assistência fez questão de lembrar por duas vezes que mais tarde ou mais cedo seria delineado o mapa cerebral e que tal, em conjunto com o conhecimento das reacções bioquímicas que o som produz no cérebro humano, permitiria saber-se como fazer boa música para o cérebro, isto é, permitiria a qualquer máquina decentemente programada criar música para o humano ouvir com agrado.
É uma imagem pertinente. Não me espanta nada que com o avanço da bioquímica e da tecnologia em geral se possa chegar a um estado destes. No campo das imagens, por exemplo, sabemos que a intermitência cadenciada de luz produz efeitos nada negligenciáveis naqueles que a vêem. Ainda na noite anterior ao debate, no concerto para filmes de Lee Ranaldo, João Paulo Feliciano advertia eventuais epilécticos presentes na sala do S. Jorge para o risco que poderia constituir a curta-metragem "The Flicker", que não era mais do que meia hora de flashes de luz branca. Desde a altura que "The Flicker" foi realizado (falha-me a memória, mas talvez anos 40), muito já se avançou neste campo. Imagens subliminais, terapias de choque através de imagens, etc., são termos a que nos fomos habituando. Ao mesmo tempo, e voltando à música, vamos ouvindo falar que muitos dos grandes êxitos mainstream são minuciosamente produzidos, com base em hipotéticos estudos, para que esta ou aquela frequência, esta ou aquela sequência de notas, agradem ao maior número de pessoas.
Por mais pertinente que seja esta ideia dos efeitos bioquímicos dos sons, estaremos sempre a falar de algo que é apenas, afinal, uma das muitas faces da música. Isto é, a música não pode ser reduzida ao estímulo sensorial. Como forma de expressão, a música é pluridimensional e encerra em si muitos mais atributos do que um encadeamento de frequências e volumes. Para começar, a música é indissociável do contexto em que foi produzida, por um lado, e do contexto em que é ouvida, por outro. Beethoven não faria hoje o mesmo tipo de sinfonias. Pelo lado do ouvinte, não podemos ter pretensões de ter as mesmas sensações a ouvir as primeiras canções dos Rolling Stones como os nossos pais ou avós tiveram há quarenta anos. A música tem tempo, tem espaço, tem relevo social e relevo cultural. Mais importante ainda, talvez, cada ouvido é diferente de outro ouvido.

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