quarta-feira, 19 de outubro de 2005

Como gostar e não gostar do Last Days

(O que se segue advém da ressaca do visionamento do mais recente filme de Gus Van Sant, Last Days, alegadamente baseado nos últimos dias da vida de Kurt Cobain. Não é, naturalmente, um filme onde reine o suspense -- toda a gente sabe que a personagem principal morre no fim, aha! -- mas acho que as palavras que se seguem devem ter como destinatários exclusivos aqueles que já o viram. Eu, pelo menos, não gosto de ler muito acerca de um filme antes de o ver.)

Não gostei do Last Days...
É uma valente modorra. Blake (o Kurt Cobain de Gus Van Sant) aparece retratado como um heroinómano, presume-se, no seu mais profundo estado de decadência. Murmura, cai, levanta-se, morre aos poucos. É, porém, uma reprodução, ainda que forçada, da decadência humana que qualquer um de nós já testemunhou, entre o círculo de amigos, na vizinhança, na escola, etc. E, provavelmente, acaba por ser uma visão fiel, em certa medida, à matéria em que Van Sant se baseou para trabalhar o filme. Mas hora e meia de Blake é cansativa. Sabe-se desde o início, naturalmente, que aquela desgraça não tem qualquer saída. E isso cria angústia no espectador, não por simpatia, como cordas que reagem ao movimento de outras, mas antes porque o espectador cada vez menos aguenta as quedas e os murmúrios daquele desgraçado, cada vez menos aguenta aqueles tiques forçados de puto indie...

...mas gostei do Last Days
Quase paradoxalmente, é justamente o vazio destes últimos dias de Blake que acaba por dar valor ao filme. Van Sant podia ter feito uma bio pic cheia de "rock'n'roll glamour", repetindo tudo o que meio mundo já disse acerca do líder dos Nirvana e da sua morte. Podia ter-se espalhado ao comprido, como Oliver Stone se espalhou com o filme dos Doors. Mas conseguiu, porém, ter o discernimento de não seguir esse caminho. Blake/Cobain é um comum heroinómano em fim de viagem, tal como porventura teria sido, no passado, um puto igual a qualquer outro. Não é o líder do ressurgimento do rock'n'roll, não é o Cristo do movimento grunge (a mais grave mentira MTV de sempre), nada disso. Discordo, por isso, em absoluto com o Miguel Guedes, dos Blind Zero, quando ao fim do filme, no debate que a Medeia Filmes promoveu, se queixava por ver Kurt Cobain a ser tratado como "uma pessoa como qualquer um de nós" e que "os Nirvana e o seu líder deviam ter outro tratamento, pelo que foram". Van Sant procurou exactamente o inverso, creio. Fugiu, tal como Blake foge a todos os que o procuram durante aqueles últimos dias, à imensa cacofonia mediática posterior à morte de Cobain (ou, se quisermos, posterior à saída de "Nevermind"...)

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