quarta-feira, 31 de março de 2004

E se fosse hoje?

No passado sábado, por ocasião da apresentação do livro "Mão Morta - Narradores da Decadência", na parte em que esta entrou numa saudável conversa entre a mesa e o público, houve alguém que me colocou uma questão interessante: "E se os Mão Morta tivessem começado hoje, teriam o mesmo sucesso?". Não tenho a certeza de que fossem exactamente este os termos da pergunta, mas o sentido não há-de diferir muito. Achei interesse à pergunta, porque ela obriga a uma reflexão importante àcerca da música feita em Portugal.

Pondo logo de parte a abordagem pela via da estética (isto é, que sentido faria uma banda influenciada no punk e na música industrial aparecer assim hoje, tal como apareceram os Mão Morta em Novembro de '84? Francamente, por aí nem me quero meter), a resposta que dei, e que agora posso desenvolver, assentava numa dupla abordagem, contraditória em si mesma (ou talvez não, a dialéctica que entre em acção):

1) Os Mão Morta teriam mais dificuldade em aparecer hoje. A indústria da música em Portugal (ou a mercearia da música, como muitos bem lhe chamam) é hoje muito diferente do que era há vinte anos atrás (por mim até nem vou tão longe, pois até nem tenho idade para tal). Como dizia ontem o Rui Monteiro, no Blitz, tinha-se maior empenho na busca das coisas mais interessantes, em virtude de não sermos bombardeados com um excesso de lançamentos de discos de novas bandas, nacionais ou estrangeiras. Hoje, com as exíguas redacções que temos, é quase impossível ao jornalista ter tempo de procurar os fenómenos ("há ali uma pilha de discos que convém falar"; "bolas, esta semana já é a quarta entrevista que me mandam fazer e ainda não consegui preparar nada"). Há, por isso, todo um maelström de informação, na maior parte das vezes acessória ou desnecessária, que impede: a) de ir mais ao pormenor das coisas que interessam; b) de descobrir fenómenos enquanto estes ainda estão na sua génese. Hoje, por exemplo, afigura-se-me como impossível termos um Fernando Sobral a chamar uma nova banda como a "melhor banda portuguesa do momento" quando a mesma está ainda distante de gravar um disco, como ele fez com os Mão Morta, em Novembro de 1985 (apenas um ano após a formação do grupo). Parece-me também impossível que uma rádio esteja apta a eleger um novo grupo como "Melhor Grupo Sem Registo em Vinil [CD, nos dias de hoje], como a RUT fez em 86, com os Mão Morta. Temos actualmente diversos exemplos de bandas interessantíssimas que não conseguem chamar mais do que os amigos aos seus concertos (e estou a falar de algumas que dão muitos concertos, como os Fat Freddy ou os Bypass), porque não há quem as divulgue ou, o que é igual, a divulgação que é feita perde-se no meio do turbilhão de caracteres.

2) Por outro lado, os Mão Morta têm mostrado, ao longo destes vinte anos, uma persistência ímpar e uma perspectiva diletante e anti-comercial que poderiam servir, ainda no campo da hipótese "e se fosse hoje?", de anti-corpos aos malefícios do crescimento da indústria. Uma das coisas que falta a muitas bandas actuais é a persistência. Não querendo partir para um juízo de valor excessivo, até porque só os músicos sabem os sacrifícios que desempenham muitas das vezes em prol de pouco mais do que o engate da loira mais boazona da escola (e já não é nada mau), acontece que muitas das vezes as bandas de hoje prendem-se na sua arrogância, na sua sala de ensaios, exigem cachets exorbitantes, esquecem que precisam é de muitos concertos e não de um disco que ninguém vai ouvir. Ora, se os Mão Morta tivessem surgido hoje, conforme o elemento do público questionava, talvez conseguissem, à força da insistência e do diletantismo (leia-se aqui como "não precisar da música para pagar as contas") ultrapassar as barreiras que descrevi no parágrafo anterior.

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