Lhasa volta a Portugal para mais dois concertos. Recupero as notas escritas na ressaca daquele belíssimo concerto de há meses, no Forum Lisboa:
A ESTRADA VIVA
Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.
(Pessoa)
Estava-se sensivelmente a meio da primeira parte do espectáculo. Lhasa, que antes havia dito ter andado a aprender umas «palavras de portugueich'», utilizadas aliás na apresentação dos diversos temas, acercava-se uma vez mais do microfone, agora visivelmente tímida e insegura, para anunciar: «hum... hum... (pausa) hum... a próxima canção é... (pausa) portuguesa.» Para surpresa geral, vieram umas notas de guitarra familiares, com Lhasa a cantar «meu amor / meu corpo em movimento / minha voz à procura / do seu próprio lamento». Ela estava a cometer a ousadia de cantar um belíssimo fado escrito por Ary dos Santos para a Amália, perante uma plateia imensa de portugueses! E, não, não soava mesmo nada mal na sua voz, mesmo que, porém, a guitarra estivesse para aquela canção como a lagoa de Óbidos está para o Oceano Atlântico. Foi a mais longa ovação da noite, mas o espectáculo de ontem teve muitos outros momentos de especial intensidade, como aqueles em que Lhasa recuperou alguns dos melhores temas de "La Llorona", bem como do recente "The Living Road", ao longo de um imenso périplo que chegou até à Chechénia, por exemplo, num inédito que se revelou uma das melhores interpretações musicais da noite. Lhasa é a expressão viva do poema de Pessoa, viaja, perde países, perde músicas, perde culturas, é outra constantemente, não tem raízes. Ou então sente-as todas como se fossem suas, assume, como poucos, a condição de cidadã do mundo, de um mundo em que a música é essência fulcral na vida das pessoas, banda sonora para a alegria, para a tristeza, para o entretenimento, para a reflexão, para um fim de ano, para um fim do mundo.
O espectáculo começou e acabou com "The Living Road". "Con toda Palabra" abriu e, já em segundo encore, "Soon This Place Will Be Too Small" encerrou, depois de uma longa introdução em que Lhasa foi buscar um pensamento do seu pai acerca da vida, que não cabe aqui reproduzir, mas que arrancou dos presentes uma enorme ovação, conquistada que estava a simpatia, desde muito cedo, aliás, desde antes do espectáculo, porventura. O único senão da noite prende-se com o grupo que acompanha Lhasa. Podia ter-se chegado ao êxtase, ao nirvana ou a qualquer outro estado de epifania, mas os músicos -- à excepção, porventura, do teclista-melodista-programador -- dificilmente conseguiriam estar à altura da cantora, para tal ser possível. Lhasa é uma espécie de cruzamento de Tom Waits (ou Arthur H) com Edith Piaf, e a crueza, a rudeza, a emoção que imprime à sua forma de cantar não encontrou paralelo na limpidez asséptica e com pouca alma dos restantes instrumentistas. Foi um processo que teve melhorias graduais ao longo da noite, mas não suficientes. Fosse Lhasa uma maçã biológica portuguesa, saborosa, rica e, provavelmente, com aspecto rude, os seus músicos eram como cachos de uvas envernizadas e insípidas. Não deixou, porém, de ser uma óptima salada de frutas exóticas.
(9/10)
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