quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

Sobre o diabo

Ontem peguei no carro e juntei amigos para fazermos uns quilómetros até Coimbra, para ver o Kimmo Pohjonen ao vivo. À medida que a cidade dos estudantes se ia aproximando, a ansiedade por ver pela primeira vez o acordeonista finlandês ia ganhando proporções maiores, o que nem sempre é bom, já que expectativas demasiado altas rotundam, muitas das vezes, em desilusões proporcionalmente esmagadoras. "Quanto mais alto se é, maior é o tombo." Não foi o caso. Se algo houve de esmagador foi mesmo a actuação de Kimmo e do também finlandês Samuli Kosminen, no projecto que ganhou o nome Kluster, sob o qual foi no ano passado editado um álbum.

O concerto começou da maneira porventura mais difícil, com Pohjonen a tratar o acordeão num improvável estilo para quem é já rotulado como um virtuoso (e ele é mesmo, como se testemunharia ao longo do concerto), afagando as teclas e o corpo do instrumento ao de leve, progressivamente criando as bases para uma amálgama sonora, cada vez mais amplificada, transformada e soberbamente pontilhada pelos bleeps e clicks de Kosminen. Estávamos mais perto de uma sessão de noise improvisado do que de um espectáculo de um acordeonista. Como ponto de partida, como instrumento de choque para uma plateia que aguardava com atenção o que se ia desenrolar, não estava nada mal. Mas o melhor viria daí para a frente.

Pohjonen está para a tradição europeia do acordeão como Diamanda Galás está para os cabarets de Berlim. Está tão distante de Kepa Junkera, para nos situarmos em terrenos dos foles, como a israelita Meira Asher está, no terreno da voz, da inglesa June Tabor. É um autêntico diabo em palco. Ou melhor, é um Dr. Fausto perdido, com a alma já vendida a Méphistophélès, e que em palco tenta esconjurar o demónio. Tal como aconteceu naquela brilhante performance conduzida sensivelmente a meio do espectáculo. Dando, porventura, a ideia que todo o vício que habita a alma daquela personagem perdida se concentrava no acordeão, o tocador liberta-se do instrumento maldito enquanto faz esgares de horror e de exorcismo que fariam corar Linda Blair de vergonha. Mas o processo de fuga é infrutífero... Os dedos de Pohjonen começam a tremer e a sentir a falta das teclas, como se de uma dor fantasma posterior a uma amputação se tratasse, e depressa o instrumento volta ao seu colo. O vício é irreversível and the show must go on.

O concerto não termina sem dois encores e longas ovações em pé. O público de Coimbra mostrou que ficou rendido ao Fausto de Pojohnen. Hoje e amanhã será a vez de Lisboa e Famalicão.

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