Na música, como em tudo (leia-se o "Freakonomics", de Steven Levitt e Stephen J. Dubner, por exemplo), surgem questões que, ora ficam sem resposta, ora são desde cedo coladas a argumentos provenientes dessa coisa perniciosa chamada "senso comum", que podem, muitas das vezes, e com relativa facilidade, serem postos em causa por uma análise mais fria e mais rigorosa da realidade.
Lembrei-me, por isso, de aqui iniciar uma rubrica, sem qualquer espécie de regularidade fixa, a propósito de algumas destas questões, procurando respostas na informação disponível. E a primeira destas questões, vulgarmente usada e abusada sempre que se fala da crise discográfica:
Os discos estão caros?
Há, entre várias outras possibilidades, duas formas de interpretar a pergunta. Numa primeira abordagem, pretende-se saber se os discos estão hoje mais caros relativamente a outros bens de consumo, do que estavam num momento passado. Não se trata tanto de perceber se os discos são caros, mas sim se estão mais caros hoje do que antigamente por comparação com outros bens. Há que concordar que, se há 20 anos já eram intrinsecamente caros, por mais subjectiva que possa ser esta qualidade, então não será por o serem também hoje que o preço pode servir como argumento para a crise discográfica. O que interessa aqui, então, é perceber se o preço dos discos subiu mais do que o dos outros produtos.
Para esta tarefa, há um indicador ideal: o Índice de Preços no Consumidor (IPC). O IPC é medido a partir dos preços de um conjunto de bens e serviços considerados representativos da estrutura de consumo da população residente em Portugal. A famosa taxa de inflação, por exemplo, é construída a partir da evolução média a Dezembro de cada ano dos últimos 12 meses. Mas não compliquemos. Através de um cálculo muito básico, aqui só se pretende saber quanto este índice evoluiu entre um qualquer momento no passado e a actualidade, como se chegássemos a uma taxa de inflação de um longo período de anos.
Mas antes disso ainda, há que ter uma noção dos preços dos discos nesse passado que queremos comparar com a actualidade. A memória diz-me que no final dos anos 80, comprava LPs na discoteca do Xenon por cerca de 1800 escudos, um preço mais baixo do que na generalidade dos sítios, a começar pela Motor, que uma ou duas centenas de metros mais abaixo, nos Restauradores, tinha preços à volta de 1900 ou 2000 escudos. De uma consulta que fiz à memória de amigos, não há grande divergência de números. Quem estiver a ler isto pode também avançar com outros preços que se lembre (ou até que estejam ainda afixados nas capas dos discos).
Voltando ao IPC, e se usarmos os anos de 1989 e de 2009 como balizas temporais de um período de aproximadamente duas décadas, podemos concluir que os preços, na sua generalidade, evoluíram 2,34 vezes (fonte: INE, Índice de Preços no Consumidor no Continente). Se olharmos para a série do IPC que não considera o preço da habitação, essa variação é ligeiramente menor: 2,28.
Ora, se um disco custava em 1989, em termos médios, 1900 ou 2000 escudos (ou seja, 9,5€ ou 10€), e se este evoluísse à mesma medida que os preços dos bens que compõem o cabaz de consumo dos portugueses, incluindo a habitação, hoje teríamos preços à volta dos 22€ ou 23€. E temos, realmente? Não. Em 2010, não é, de facto, frequente um disco, em CD, chegar sequer aos 20€. Já os LPs custam isso ou mais em sítios não especialmente vocacionados para a venda do formato, mas ficam aquém destes preços nas lojas especializadas. Estão os discos mais caros do que eram antigamente? Não.
Numa segunda abordagem, como prometida mais acima, podemos olhar não só para a evolução dos preços, mas também para o que aconteceu com os ganhos de poder de compra. De uma forma geral, embora isso não aconteça sempre, muito menos neste período de recessão, os salários crescem mais que os preços. Em termos simplistas, a economia cresce e o ganho desse crescimento é distribuído pelos factores que o geraram (não vem ao caso a justiça dessa distribuição). Podemos então olhar para o que foi o crescimento dos ganhos resultantes do trabalho, o que podemos fazer através da informação de um instrumento estatístico chamado Quadros de Pessoal, do Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, que regista, entre muitas outras coisas, as remunerações e os ganhos (um conceito mais lato de vencimento) ao longo dos anos (informação, uma vez mais, disponível no pordata). E, entre 1989 e 2008 (ano disponível mais recente), os ganhos médios dos trabalhadores por conta de outrem portugueses, do regime privado, aumentaram 2,47 vezes. Mais do que os preços, como dizia. Ou seja, se o tal disco que em 89 custava 1900/2000 escudos evoluísse da mesma maneira, hoje teria que custar quase 25€. E não custa.
Foram duas abordagens possíveis para uma resposta negativa à pergunta "os discos estão caros?". Por favor, deixem de usar esse argumento para a queda no mercado da música gravada. Talvez seja mais indicado o argumento do alargamento da gama de bens consumidos hoje aos telemóveis e às respectivas chamadas, ao fornecimento de internet e de televisão, às roupas caras de usar e deitar fora, ou, mesmo na música, aos dvds, aos concertos, etc. Ou ainda, claro, à gratuitidade das canções. Há até instrumentos estatísticos que permitem estudar a evolução da composição do cabaz de consumo dos portugueses, mas isso fica para outras núpcias...
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