[Sobre as primeiras reuniões entre músicos organizadas por Gilberto Gil, na génese do tropicalismo] Se, por um lado, Chico, boêmio e desconfiado de programas, embriagava-se e ironizava o que mal ouvia (...). Enfim, Gil não chegou a desistir de se fazer entender, pois os outros é que desistiram de tentar segui-lo. Restava-nos seguir sozinhos.
[Sobre os tempos em São Paulo] Naquela mesma noite eu estreava na TV e a partir de então meu conhecimento de letras de canções brasileiras e minha memória se tornaram lendários. Chico Buarque era o meu maior competidor, com uma vantagem: seu reportório era extenso como o meu e sua memória igualmente fresca, mas ele era ainda capaz de inventar na hora canções tão bem-feitas que pareciam jóias da nossa tradição aos ouvidos dos responsáveis pelo programa. Ganhámos vários automóveis Gordini -- que vendíamos automaticamente sem averiguar se perdíamos alguma coisa nessa venda -- nos meses que se seguiram à minha estréia. E eu fiquei, além de famoso, rico, para os meus padrões. Passei a ir quase semanalmente a São Paulo. As noitadas com Chico e Toquinho eram deliciosas, e com isso São Paulo deixou de ser o lugar detestável da minha primeira experiência. (...) Chico tinha um carro e sabia tudo da cidade onde crescera e estudara. Muitas vezes ele bebia demais, e nós tínhamos que acordá-lo para que nos levasse de volta para casa. Não nos dava medo o fato de ele ir praticamente dormindo até o assento do carro no qual, uma vez dada a partida, ele exibia uma destreza surpreendente. (...) Chico, com seus lindos olhos verdes que fixavam-se em nós com uma dureza diabólica, era dono de um humor mais sádico do que o de Capinan. Nessa época, sua beleza era extraordinária, mas entre angelical e demoníaca, quase divina em todo o caso, não me parecia sexualmente atraente (...), o que me levou a brincar de chamá-lo, sem que isso causasse constrangimento, "meu noivo". Na verdade, as meninas eram o tema mais freqüente das nossas conversas. Chico fazia ciúmes de suas namoradas comigo e por vezes chegava a dizer a Dedé, no Rio, que eu as assediava. (...) Uma vez, foi aos nossos amigos em São Paulo que Chico assustou com uma história a meu respeito. Assim como eu ia muito a São Paulo, ele vinha muito ao Rio. Numa de suas voltas, ele contou, com grave discrição, que eu tinha enlouquecido. Manteve a mentira até que eu aparecesse por lá. A notícia se espalhou entre os conhecidos, naturalmente, e Chico chegou ao requinte de detalhar para Toquinho, que ficara consternado, uma visita que Bethânia me teria feito no sanatório: quase chorando, ele repetia o que eu teria dito ao vê-la na porta do quarto: "Sai, carcará! sai, carcará!". Quando voltei a São Paulo, encontrei diversas pessoas que se surpreendiam ao me ver, me olhavam demoradamente, prestavam demasiada atenção no que eu dizia. Muitos me perguntavam: "Você está bem?".
[Sobre "Alegria, Alegria", do próprio Caetano] Mas o que ninguém nunca disse -- nem mesmo eu, que até aqui só falei em Beatles, Gilberto Gil e Franklin Dario quando tratei da gênese de "Alegria, alegria" -- é que "Alegria, alegria" foi em parte decalcada exatamente de "A banda" [de Chico Buarque].
(...) Minha primeira lição sobre armadilhas de imprensa se deu exatamente por causa disso. Uma moça simpática, entrevistando-me para a revista InTerValo (...), perguntou-me como eu via a diferença entre mim e Chico. Eu, estimulado pela oportunidade (...), expliquei-lhe que o que eu fazia era expor o aspecto de mercadoria do cantor de TV. Que tanto eu quanto Chico estávamos dizendo muitas coisas com nossas canções, mas que, do ponto de vista da televisão, eu era um cara de cabelo grande e Chico era um rapaz bonito de olhos verdes; e que quanto mais desmascarado estivesse esse jogo, mais nossas canções e nossas pessoas estariam livres. Poucos dias depois saiu a reportagem com minha declaração sumária de que "Chico Buarque não passa de um belo rapaz de olhos verdes". Tom Zé (...) não tinha esses cuidados com Chico Buarque. Perguntado num programa de televisão sobre o confronto tropicalistas versus Chico, respondeu que, de sua parte, respeitava muito Chico Buarque "pois ele é nosso avô". Lembro de, ao ser informado dessa história (...), rir às gargalhadas com Guilherme, comentando o fato de eu ser dois anos mais velho que Chico -- e Tom Zé seis anos mais velho do que eu. (...) Um episódio, no entanto, me pareceu inaceitável. Já no final de 68, Gil estava com Sandra (...), numa frisa do Teatro Paramount, onde se realizava uma eliminatória do festival da Record daquele ano. Um grupo de pessoas na platéia recebeu a entrada de Chico no palco aos gritos de "superado!, superado!". Gil comentou com Sandra que aquilo era inadmissível. Levantou-se investiu contra os manifestantes. Um jornalista quis ver -- e assim publicou depois no seu jornal -- que Gil havia liderado uma vaia ao Chico. (...) Hoje todo o mundo que escreve sobre os acontecimentos de então se compraz em dizer que havia dois lados que se confrontavam nesses festivais: um a nosso favor, outro a favor de Chico. As coisas não eram assim.
"Verdade Tropical", Caetano Veloso (Companhia das Letras, 1997; Quasi Edições, 2003)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Os comentários antigos, da haloscan/echo, desapareceram. Estão por isso de regresso estes comentários do blogger/google.