A simples viagem de avião com Tom Zé de Salvador para São Paulo já deu o tom do que seria sua atuação. O Caravelle da Cruzeiro do Sul -- aeronave cuja modernidade de linhas me encantava como um samba de Jobim ou um prédio de Niemeyer --, voando em céu azul, parecia que ia explodir com a vibração da presença de Tom Zé. E isso chegou a exteriorizar-se até o conhecimento da aeromoça e quem sabe de outros passageiros. Não que ele se mostrasse nervoso por estar voando -- embora sua ostentação de estranheza em relação a tudo o que se passava no avião indicasse (talvez enganosamente) que ele nunca tinha voado --, mas seu sotaque e suas expressões arcaicas pareciam agredir a realidade tecnológica da aviação e o conforto burguês dos "serviços" de consumo: ele estava me dizendo -- e dizendo a si mesmo e ao mundo -- que ia, sim, para São Paulo, mas que permaneceria irredutível quanto a certos princípios e traços de caráter. Ele lidava de modo inventivo -- e bizarramente elegante -- com o medo da mudança de situação. Referia-se ao avião em que estávamos como "essa caravela", indicando intimidade e estranheza ao mesmo tempo, e, por trás dessa ironia, comentando o sentido de partida para outro continente que essa viagem tinha para ele. Quando a aeromoça se aproximou para perguntar o que queríamos beber, ele respondeu certamente: "Cachaça". Havia humor na obviedade de seu conhecimento de que não deviam servir cachaça a bordo. Mas a sinceridade de seu ar desafiador -- embora não impolido -- levava a pensar em como era ridícula a pretensão de refinamento da freguesia desses serviços (não havia, por exemplo, uma só aeromoça preta em qualquer companhia de aviação brasileira) tornados amorfamente "internacionais", e em como Tom Zé estava disposto a não contemporizar com isso. À esperada resposta da aeromoça -- "Desculpe, não temos" -- ele começou a desapertar o cinto de segurança e, fazendo menção de levantar-se, disse -- dirigindo-se a minha, não a ela: "Então eu vou-me embora. Mande parar essa caravela". A verdade com que essas palavras foram ditas assustou-nos, a mim e à moça, pois, embora, soubéssemos impossível obedecer a tão absurda ordem, sentíamos, na determinação com que esta fora dada, que ela se imporia de alguma maneira."
quarta-feira, 9 de agosto de 2006
Verdade Tropical #1
No seu "Verdade Tropical", ensaio biográfico do tropicalismo, Caetano Veloso refere-se poucas vezes a Tom Zé, por comparação com outros companheiros da altura (Gilberto Gil, Gal Costa, os Mutantes, etc.) e mesmo outros não tropicalistas (João Gilberto, Chico Buarque, cineastas, escritores, filósofos, etc.). Mas a dada altura conta este episódio sobre o último dos sobreviventes tropicalistas:
A simples viagem de avião com Tom Zé de Salvador para São Paulo já deu o tom do que seria sua atuação. O Caravelle da Cruzeiro do Sul -- aeronave cuja modernidade de linhas me encantava como um samba de Jobim ou um prédio de Niemeyer --, voando em céu azul, parecia que ia explodir com a vibração da presença de Tom Zé. E isso chegou a exteriorizar-se até o conhecimento da aeromoça e quem sabe de outros passageiros. Não que ele se mostrasse nervoso por estar voando -- embora sua ostentação de estranheza em relação a tudo o que se passava no avião indicasse (talvez enganosamente) que ele nunca tinha voado --, mas seu sotaque e suas expressões arcaicas pareciam agredir a realidade tecnológica da aviação e o conforto burguês dos "serviços" de consumo: ele estava me dizendo -- e dizendo a si mesmo e ao mundo -- que ia, sim, para São Paulo, mas que permaneceria irredutível quanto a certos princípios e traços de caráter. Ele lidava de modo inventivo -- e bizarramente elegante -- com o medo da mudança de situação. Referia-se ao avião em que estávamos como "essa caravela", indicando intimidade e estranheza ao mesmo tempo, e, por trás dessa ironia, comentando o sentido de partida para outro continente que essa viagem tinha para ele. Quando a aeromoça se aproximou para perguntar o que queríamos beber, ele respondeu certamente: "Cachaça". Havia humor na obviedade de seu conhecimento de que não deviam servir cachaça a bordo. Mas a sinceridade de seu ar desafiador -- embora não impolido -- levava a pensar em como era ridícula a pretensão de refinamento da freguesia desses serviços (não havia, por exemplo, uma só aeromoça preta em qualquer companhia de aviação brasileira) tornados amorfamente "internacionais", e em como Tom Zé estava disposto a não contemporizar com isso. À esperada resposta da aeromoça -- "Desculpe, não temos" -- ele começou a desapertar o cinto de segurança e, fazendo menção de levantar-se, disse -- dirigindo-se a minha, não a ela: "Então eu vou-me embora. Mande parar essa caravela". A verdade com que essas palavras foram ditas assustou-nos, a mim e à moça, pois, embora, soubéssemos impossível obedecer a tão absurda ordem, sentíamos, na determinação com que esta fora dada, que ela se imporia de alguma maneira."
A simples viagem de avião com Tom Zé de Salvador para São Paulo já deu o tom do que seria sua atuação. O Caravelle da Cruzeiro do Sul -- aeronave cuja modernidade de linhas me encantava como um samba de Jobim ou um prédio de Niemeyer --, voando em céu azul, parecia que ia explodir com a vibração da presença de Tom Zé. E isso chegou a exteriorizar-se até o conhecimento da aeromoça e quem sabe de outros passageiros. Não que ele se mostrasse nervoso por estar voando -- embora sua ostentação de estranheza em relação a tudo o que se passava no avião indicasse (talvez enganosamente) que ele nunca tinha voado --, mas seu sotaque e suas expressões arcaicas pareciam agredir a realidade tecnológica da aviação e o conforto burguês dos "serviços" de consumo: ele estava me dizendo -- e dizendo a si mesmo e ao mundo -- que ia, sim, para São Paulo, mas que permaneceria irredutível quanto a certos princípios e traços de caráter. Ele lidava de modo inventivo -- e bizarramente elegante -- com o medo da mudança de situação. Referia-se ao avião em que estávamos como "essa caravela", indicando intimidade e estranheza ao mesmo tempo, e, por trás dessa ironia, comentando o sentido de partida para outro continente que essa viagem tinha para ele. Quando a aeromoça se aproximou para perguntar o que queríamos beber, ele respondeu certamente: "Cachaça". Havia humor na obviedade de seu conhecimento de que não deviam servir cachaça a bordo. Mas a sinceridade de seu ar desafiador -- embora não impolido -- levava a pensar em como era ridícula a pretensão de refinamento da freguesia desses serviços (não havia, por exemplo, uma só aeromoça preta em qualquer companhia de aviação brasileira) tornados amorfamente "internacionais", e em como Tom Zé estava disposto a não contemporizar com isso. À esperada resposta da aeromoça -- "Desculpe, não temos" -- ele começou a desapertar o cinto de segurança e, fazendo menção de levantar-se, disse -- dirigindo-se a minha, não a ela: "Então eu vou-me embora. Mande parar essa caravela". A verdade com que essas palavras foram ditas assustou-nos, a mim e à moça, pois, embora, soubéssemos impossível obedecer a tão absurda ordem, sentíamos, na determinação com que esta fora dada, que ela se imporia de alguma maneira."
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