Voyeurismo de hora de almoço
De vez em quando, vou almoçar a um café na Barata Salgueiro, um pouco mais abaixo da Cinemateca. Frequentemente, encontro dois indivíduos, cada um com mais de sessenta anos de idade, por certo, sempre na mesma mesa. Um deles usa um boné que diz logo que deve ser um velho intelectual de esquerda, apreciador de jazz, apreciador do bom charuto. O outro fala imensamente alto, de maneira que toda a esplanada do café toma conhecimento das conversas tidas entre os dois. Na mesa, há sempre diversos jornais e revistas, essencialmente publicações de letras, de cinema ou de actualidade, do Record ao Expresso. Entre eles trocam discos, cassettes de vídeo com filmes ou gravações de concertos e, imaginem, recortes de jornais que podem ir de críticas a um determinado filme ou a notícias tão específicas como o "tempo que demorará a viagem de TGV de Madrid a Lisboa". Nas conversas, falam da programação do Musik, daquele filme raríssimo que devia ter uma exibição num qualquer cineclube local, de viagens a Espanha que vão fazer com outras pessoas, não esquecendo de tomar nota da importância do facto de se passar por Badajoz para se comprar charutos.
Era só para dizer que, se chegar à idade deles, quero ser assim.
Ao longo deste tempo, e na partilha do horário do almoço, vim a conhecê-los melhor. Como camaradas de trabalho, quase daria para dizer, pelo menos em relação a um deles, o que usava boné e era apreciador do bom charuto, como dizia no relato. era o Cintra. Manuel Cintra Ferreira, programador da Cinemateca e crítico de cinema no Expresso. O outro, que na verdade só aparecia uma vez por semana, era o Luís, seu compadre e amigo de longa data, desde que se conheceram nos míticos cine-clubes do tempo da outra senhora e nos ajuntamentos de fanáticos pela banda desenhada. Havia uma razão para falarem tão alto. E eu próprio vim, com o tempo, a falar também alto, sempre que almoçava com o Cintra. É que o Cintra ouvia mal, coitado, e porque gostávamos de conversar com ele, víamo-nos obrigados a encher os pulmões e assustar todos os incautos comensais da esplanada. Numa das últimas conversas, falávamos de cinema alemão e eu não tinha uma caneta. Imaginem o que é tentar falar em nomes alemães quase inexprimíveis, mesmo quando o interlocutor tem boa audição, e não ter uma caneta à mão para os escrever na toalha da mesa...
Há meses, o Cintra dizia-me que tinha um tumor no cérebro. Logo a seguir, deixou de aparecer. Foi operado. Voltou mais tarde, para alguns almoços esporádicos, em que me contava histórias da casa de repouso onde tinha passado a residir. Ríamo-nos das tácticas de fuga dos outros velhos.
O Cintra morreu hoje, aos 68 anos (notícia TSF aqui). Não tinha família, pelo menos que falasse dela, mas deixou amigos enlutados.
Como dizia no relato de há seis anos, se chegar à idade deles, quero ser assim.
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