Deve o Estado apoiar a cultura?
A questão ganhou particular actualidade com episódios recentes, e felizmente encerrados, mas suscitou sobretudo opiniões desencontradas onde talvez fosse melhor haver mais estudo. Daí que faça sentido ir buscar um livro já antigo, "A Matter of Principle", de Ronald Dworkin, publicado em 1985 pela Harvard University Press. Um texto nele incluído denomina-se precisamente "Deve um Estado liberal subvencionar a cultura?", e teve origem numa comunicação a um colóquio no Metropolitan Museum de Nova Iorque, em Abril de 1984.Anote-se que Ronald Dworkin é um dos maiores pensadores políticos do nosso tempo, autor famoso de "Taking the Rights Seriously". Tem neste caso a imensa vantagem de ser americano, com a vantagem suplementar para alguns de não ser francês. Ele começa por distinguir entre duas estratégias argumentativas: a estratégia economicista e a estratégia elitista. A primeira diz que as pessoas devem ter a cultura que estiverem dispostas a pagar. A segunda diz que as pessoas devem ter a cultura que a humanidade merece e tem valor tudo o que contribui para o progresso e desenvolvimento da humanidade.Para a estratégia economicista, a solução é simples: o mercado é que diz o que as pessoas querem. Por esta lógica, um museu deveria fazer pagar a entrada a um preço que correspondesse à totalidade dos seus custos.Ronald Dworkin começa no entanto por fazer uma análise pormenorizada da posição economicista, sugerindo mesmo que ela poderia aceitar em certa medida alguma forma de subsídios. Primeiro argumento: a relação entre os preços do mercado e os desejos das pessoas está longe de ser sempre directa e simples. Porque os preços nem sempre dão a medida exacta do que pretende a população no seu conjunto: "Se as riquezas estão muito desigualmente distribuídas, o facto de um rico comer caviar, quando o pobre gostaria de ter possibilidade de comprar pão, não significa que o conjunto da sociedade dê mais valor ao caviar do que ao pão."O segundo tipo de argumento defende a noção de "bens colectivos". Na definição que dá, "bens colectivos são os bens cuja produção não pode ser deixada inteiramente nas mãos do mercado porque é impossível impedir que aqueles que não pagaram não acabem por retirar deles qualquer benefício". Uma pessoa não vai pagar aquilo que sabe que outros estarão dispostos a pagar. Mas se todos seguirem o mesmo raciocínio, "somos capazes de não gastar individualmente o que desejaríamos gastar colectivamente".Neste caso, a solução consiste em o Estado calcular as despesas a fazer e em fazê-las ele próprio a partir do dinheiro dos contribuintes. O apoio do Estado à cultura não seria senão uma solução pragmática para um problema técnico. Coloca-se aqui o problema da "entrada gratuita". Imaginemos um processo de vacinação contra uma dada epidemia. Em princípio, só deve pagar quem é vacinado. Mas aqueles que não quiserem pagar beneficiam do processo de vacinação porque quanto mais forem as pessoas vacinadas menos eles correm o risco de serem contaminados. Donde, eles beneficiam do que não pagaram - a isto se chama "a entrada gratuita".Um exemplo cultural: as pessoas podem não querer pagar para os museus porque não lhes interessa o que lá está dentro, ou não querem subvencionar teatro, porque não lhes interessa o que lá se passa. Mas beneficiam do afluxo de turistas que pode resultar de bons museus e de bons teatros. São atingidos por esta "externalidade".Contudo, como nota Dworkin, este argumento é um pau de dois bicos. Porque justificar os apoios à cultura pelos seus benefícios indirectos é retirar qualquer possibilidade de defendermos a cultura enquanto bem colectivo que beneficia a sociedade no seu conjunto. Esta última ideia poderá ser acompanhada por outra: a de que a cultura popular e a alta cultura são uma só forma de cultura em permanente interacção; as obras cultas passam lentamente para o plano popular e a cultura de elite recicla inúmeros contributos da cultura de massas. Mas aqui surge um problema central nestas coisas (e que Dworkin só aborda obliquamente): o tempo. Porque certas obras que começaram por ser de cultura sofisticada (mesmo quando eram deliberadamente contra ela: temos o exemplo de Andy Warhol) só lentamente passam para o plano popular (mas passam: vejam o êxito da exposição de Warhol em Serralves). Agora há aqui um outro problema: mas como se pode ter a certeza que passam? Não pode. Por isso costumo repetir que a investigação estética é análoga à científica: é preciso correr muitos riscos para acertar. Mas correr riscos custa dinheiro (e o sentimento de que por vezes esse dinheiro é perdido). No entanto, a análise de Dworkin vai mais longe, e considera ainda outro problema. Quando o Estado luta contra a poluição, parte do princípio de que sabe que o conjunto da população quer um ar respirável a um certo preço. Mas como saber se o conjunto da população quer ópera? Provavelmente muitos, se a ópera não existisse, nem davam por isso. Donde, dizer que a ópera é útil para eles, não é pressupor um juízo que eles fariam sobre as suas próprias vidas, mas partir de um juízo que nós fazemos sobre as vidas deles. É claro que podemos dizer que eles não sabem que a ópera lhes falta porque precisamente a ópera lhes falta. Mas será que este raciocínio circular convence os nossos economistas? Neste ponto, a conclusão de Dworkin é simples: não convence porque a abordagem económica não permite determinar se a cultura deve ser subvencionada e até que ponto.Passemos então para a abordagem elitista. Mas Dworkin - é essa a sua originalidade - pretende chegar às teses da abordagem elitista usando uma argumentação diferente da habitual. Para ele, a tese é: "A cultura desempenha dois papeis diferentes. Produz pinturas, espectáculos, romances, interiores de uma casa, desportos, folhetins policiais, que nós apreciamos e que nos dão prazer. E produz o quadro que torna possível a avaliação estética destes objectos."É este segundo ponto que é importante. Trata-se de colocar no centro das estruturas culturais "uma linguagem comum", que não é tecnicamente nem um bem público nem um bem privado, mas que "é uma fonte de avaliação mais do que uma avaliação em si mesma". O que faz que esta linguagem comum seja um bem colectivo muito especial é que "do ponto de vista daqueles que utilizam esta linguagem as 'entradas gratuitas' valem mais do que nenhuma entrada de todo".Porquê? Porque "somos todos beneficiários ou vítimas das modificações que se imprimem na nossa linguagem comum". Donde, ler e escrever sobre um livro, ver um filme, falar sobre um concerto, ouvir um disco, visitar um museu, são tudo transacções que contribuem para alterar a nossa linguagem comum, e nós podemos pressupor que as gerações futuras irão beneficiar de uma linguagem comum mais rica. Mas não será isto paternalismo? Não, porque, se o princípio liberal é permitir uma maior diversidade de escolhas, aumentando a densidade da nossa linguagem "estamos a aumentar mais do que a restringir a liberdade das nossas escolhas, porque é isto precisamente o que está em jogo no enriquecimento ou empobrecimento da linguagem". A acusação de elitismo desaparece, porque "estas estruturas afectam a vida de quase toda a gente; fazem-no de uma maneira tão fundamental e tão imprevisível que não temos nenhum dispositivo conceptual que nos permita saber quem irá beneficiar das diversas ideias e possibilidades que estas estruturas permitem produzir".Daí a conclusão: "Se é verdade que é a sociedade no seu conjunto, e não apenas as pessoas que frequentam directamente as instituições culturais, que goza do fundo comum das possibilidades estruturalmente abertas pela continuidade de linguagem, e pela conservação enciclopédica dos dados culturais, então temos boas razões para subvencionar a cultura como bem colectivo."
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