sexta-feira, 4 de junho de 2004

Mécanosphère, hoje, na ZDB



Ouve-se um respirar ofegante sob uma frequência grave. Respira. No palco, ou melhor, no capot do Rolls-Royce que percorre a auto-estrada a alta velocidade, uma bailarina de trajo andrajoso, mas provocante, desperta para o espectáculo. Dança em cima do capot. Respira. Dança. O Rolls-Royce corre pela auto-estrada e atravessa cada um dos quadros bizarros que compõem o cenário, até, claro, se esmigalhar numa valeta, como sempre esteve previsto nesta história de ficção científica. Há nesta bailarina, frágil mas arrebatadora das mais violentas paixões, um coração ciborgue que bate com um vigor que contagia o público. E que o oprime. Respira. Dança. Bum bum! Vêem-se filmes eróticos, filas de carros acidentados, pára-brisas estilhaçados, pára-choques embutidos e as coxas de uma mulher. Respira. Dança. Bum bum! Por aqui há Bilal, com os seus heróis, Nikopol e Hatzfeld, e os seus cenários de decadência urbana. Por aqui há também Ballard e as obsessões sexuais por chapa retorcida e sangue no asfalto do seu Vaughan. Respira. Dança. Bum bum! A lascívia terrificante com que a bailarina pisa o palco, o capot, o peito do espectador, convoca a atenção. Respira. Dança. Bum bum! Bum bum! BUM BUM!

No Rolls-Royce esmigalhado encontram-se quatro indivíduos. Dois franceses, um português e um americano. O primeiro dos franceses é Benjamin Brejon. O outrora aluno do percussionista de jazz Sunny Murray vive actualmente em Lisboa, mas foi em Paris que deu início ao projecto Mécanosphère. É, desde a origem, o guardião máximo do tipo de abordagem artística em causa, simultaneamente teorista e meteur en scene do contexto electro-acústico em que é trabalhado o beat, o smashed beat, o beat estilhaçado, se quisermos. O outro Mécanosphère é o português Adolfo Luxúria Canibal, que desde há vinte anos assume a frente do grupo mais subvertido do rock'n'roll português, os Mão Morta. É o principal responsável pela contaminação verbal do disco. Até à altura que Adolfo integrou o projecto, Benjamin nunca pensou fazer uma banda com um vocalista, mas agora os textos recortados e colados que aquele debita, numa simbiose perfeita entre a música e a palavra, cumprem um dos móbeis do projecto - cruzar as fronteiras da música - que em qualquer altura, como já aconteceu no passado, poder-se-á alargar a outros campos da criação artística. Além do mais, a voz de Adolfo, na maior parte das vezes gravada previamente, é trabalhada como se de qualquer outro instrumento se tratasse. Em última análise, Mécanosphère não ganhou um vocalista, mas sim um músico e performer de spoken word que constrói imagens com o seu instrumento, a sua cava voz. Voz essa que se funde no magma de loops dos tais beats estilhaçados, como sangue que se impregna nas carcaças dos automóveis acidentados.

Para este disco, outros dois músicos, elementos satélite de Mécanosphère, deram um contributo vital. O percussionista e alucinado performer Scott "Sikhara" Nydegger, colaborador de nomes tão díspares da cena musical mundial como Steve MacKay (Stooges), Lightning Bolt, Nobody Scott (Psychic TV) ou Damo Suzuki (Can), preenche na perfeição a figura do andarilho musical, que anda de terra em terra, conhece pessoas e locais e cria redes de intercâmbio artístico (exemplo: a integração de Mécanosphère no Rádon Ensemble, o colectivo de Steve MacKay). O baterista e produtor LePiloteRouge vive actualmente em Lisboa e vem do rock mais convencional, embora rapidamente se tenha convertido à abordagem Mécanosphère.

"Bailarina" é, à semelhança dos anteriores discos, o EP "Lobo Mau" e o álbum "Mécanosphère", irrepetível, característica que assiste também aos concertos do projecto. Nenhuma das onze faixas que o compõem será alguma vez reproduzida ao vivo, apesar de haver elementos que possam ser integrados na mistura em tempo real que é proporcionada em palco. Em "Bailarina" sente-se menos a electricidade de "Mécanosphère", porventura, mas o coração que marca o ritmo continua a ser meio humano, meio maquinal. Ruído, percussão e voz sobrepõem as suas fronteiras entre si, justapondo-se e transformando o terreno bravio e labiríntico por onde os nossos ouvidos prosseguem o seu trekking de grau difícil. Respira. Dança. Bum bum! Bum bum! Respira. Dança. Bum bum! BUM BUM!

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