segunda-feira, 3 de maio de 2004

A crise da indústria discográfica no Público, também

Na edição de ontem do Público, surgiu publicado uma peça do Vítor Belanciano sobre a cada vez mais evidente crise da indústria discográfica. Porque tem a ver com aquilo que falava aqui na semana passada, aqui fica o texto do Vítor:

Indústria da Música
Por POR VÍTOR BELANCIANO
Domingo, 02 de Maio de 2004

Multinacionais do disco em crise

Não se tem falado de outra coisa nos últimos anos - crise na indústria da música. Mas esse cenário parecia uma realidade abstracta em Portugal. Para parte considerável do público, designações como "iPod" ou "download" continuam a ser encaradas com estranheza, como se representassem uma realidade distante. As editoras também acordaram tarde para o fenómeno. Há três anos, a BMG portuguesa reduziu efectivos e as decisões começaram a ser partilhadas com Madrid, mas foi nos últimos meses que os sinais concretos de que a crise está a afectar as multinacionais do disco a operar em Portugal (EMI, Universal, Sony, Warner e BMG) se adensaram. Sentem-no na pele funcionários e artistas. Os primeiros são despedidos ou vivem na ansiedade de o virem a ser e os segundos vêem reduzir-se as hipóteses de edição dos seus trabalhos.

Recentemente, a EMI despediu 1500 funcionários em todo o mundo e reduziu em 20 por cento o seu catálogo. Os efeitos sentiram-se em Portugal. Antes, os escritórios da Warner em Lisboa sofreram do mesmo síndroma, e as decisões passarem a ser partilhadas ao nível da Penísula Ibérica. Na Universal aconteceram reajustamentos em forma de dispensas. Ninguém sai ileso. As editoras argumentam que os novos formatos digitais lhes estragam o negócio, mas ao mesmo tempo avançam para a criação de plataformas de "downloads" legais - a Universal portuguesa anunciou esta semana que deseja avançar para essa solução ainda este ano. Isso não impede que a política de repressão se imponha, e nos EUA foram já conduzidas a tribunal 1500 pessoas. Ao mesmo tempo, um estudo científico recente diz que não existe correlação directa entre troca de ficheiros mp3 na Net e quebra no número de discos vendidos. As opiniões dividem-se e a confusão instala-se.

O cenário de crise afecta também as pequenas editoras e distribuidoras portuguesas (MVM, Zona Música, Sabotage, Vidisco, Som Livre, Megamúsica, entre outras) e propõem-se medidas: que o IVA dos discos (actualmente de 19 por cento) seja reduzido - algo que a Espanha vai pôr em prática, ficou a saber-se esta semana -, ou que o preço dos CDs baixe. Em simultâneo ensaiam-se alternativas, com o argumento de que as grandes editoras não apostam em novos valores portugueses. Outros modelos de distribuição são tentados. Em desespero, até os jornais servem de veículo distribuidor. Uma óptima ideia não isenta de efeitos perversos. Eliminam-se intermediários, os discos são vendidos a preço reduzido, mas colocam-se os jornais em competição com distribuidoras e lojas de discos, nivelando discos de qualidade com outros duvidosos, alguns vendidos a retalho. No meio de tanta incerteza, a única certeza que existe é que indústria está em mudança acelerada. Ou melhor, já mudou.

Acesso à música imaterial
Imagine o leitor este cenário: está na FNAC, olha à sua volta e a rodear os poucos CDs existentes estão meia dúzia de nostálgicos que disputam o último álbum de Björk, em edição luxuosa e limitada. Ao lado encontramos plataformas e servidores "online" que permitem o acesso directo à música imaterial. Aglomeram-se pessoas que querem conectar os leitores de música virtual, que lhes vão permitir aceder a temas avulsos. Não é ficção, é a realidade, dentro de poucos anos. Os especialistas falam num período temporal entre 5 a 10 anos. Como foi possível chegar aqui?

Tudo começou quando um engenheiro alemão, Karlheinz Brandenburg, descobriu uma forma de comprimir um ficheiro musical sem perda de qualidade. O formato, baptizado mp3, foi colocado à disposição do público em 1994, mas popularizar-se-ia alguns anos depois, através da Net e de "sites" como o Napster, permitindo a troca de ficheiros entre particulares. Estava aberta uma "caixa de pandora" que aliava duas dimensões novas: o acesso gratuito à música, via troca, e a desmaterialização do suporte. Uma desmaterialização que, bem vistas as coisas, começou com a introdução do CD, vendido como inalterável, imune à erosão, quase estéril. Depois do orgânico vinil, a música perdeu corpo com o CD e virou imaterial com o mp3.

Depois do Napster, entram em acção outros "sites" que permitem troca de ficheiros como o Gnutella, Kazaa ou Soulseek e uma geração que nunca comprou CDs nasce. A venda de discos cai e a indústria reage pela via da criminalização, argumentando que existe uma ligação directa entre descarregamentos na Net e menos discos vendidos. Segundo a Associação da Indústria Discográfica Americana - que, desde o princípio do ano, já conduziu 1500 indivíduos a tribunal -, as pessoas que fazem "downloads" reduziram em 33 por cento as compras de CDs. Mas o assunto não é pacífico.

Uma equipa de investigadores de Harvard e da Universidade da Carolina do Norte publicou um estudo que veio comprovar, com legitimidade cientifica, aquilo que outros defendiam com argumentos do senso comum: não existe uma ligação mecânica entre descarregamentos de música na rede e decréscimo das vendas de discos. Como acontece nestes casos, deverão surgir outros estudos que proclamarão o contrário. Seja como for, independentemente de quem tem razão, o facto é que a música está cada vez mais ligada a outros suportes - jogos vídeos, filmes, telemóveis, publicidade, DVDs. A música é cada vez mais um argumento, não para vender discos, mas sim "hardware" - máquinas, ordenadores ou "ipod". O problema é encontrar formas de pagar aos criadores.

Neste contexto, a indústria tem que repensar estratégias e começa a fazê-lo lentamente. Nos EUA, serviços de "downloads" legais como o iTunes revelam-se um sucesso - apesar de existirem casos de fracasso -, e na Europa começa a perceber-se que as vendas digitais são uma realidade que veio para ficar, pelo menos até à descoberta de um novo formato, tal como aconteceu nos anos de ouro da explosão do CD. Enquanto isso não acontecer, a transição para um novo modelo económico anuncia-se doloroso para as multinacionais do disco. Em Portugal, por exemplo, é preocupante que não existam catálogos nacionais fortes e ágeis. Essa é, afinal, uma das justificações para que as multinacionais operem num mercado de fronteira como o português.

Para editoras, criadores e melómanos, o mundo digital tem novos contornos. Compram-se menos discos, mas escuta-se mais música, de estilos e épocas cada vez mais variadas. Ou seja, o digital trouxe novos desafios - alguns dolorosos e difíceis de enfrentar -, mas está também a permitir a criação de novas opções, modificando hábitos, ampliando práticas e permitindo uma melhor e maior acessibilidade à música.


Deixo ainda os links para as caixas que acompanharam esta peça:

2004 pode ser ainda pior
A crise segundo eles
AS FRASES
Curiosidades
De quem é a culpa?

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