segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Os três 10 em 10 do FMM 2010 (e outras coisas)

Foi o melhor Festival de Músicas do Mundo de Sines de sempre? Não tenho a resposta na ponta dos dedos, até porque a comparação com as edições de 2006 a 2009 não é honestamente possível, com a redução no número de dias de música ao vivo neste ano. Mas, em todo o caso, esta foi a edição que, nas minhas contas pessoais (sublinhe-se a subjectividade da coisa), teve mais concertos 10 em 10. Acredito que a expressão "10 em 10" seja suficientemente explícita (além de estupidamente redutora, eu sei). Suficientemente explícita mesmo para quem não esteja habituado a olhar aqui nestas páginas para aquilo que um psicanalista barato diria tratar-se de "uma manifestação de um desejo reprimido de integrar um júri de patinagem artística". Portanto, adiante. Deitando um olhar para o passado do FMM, é verdade que têm havido um número inacreditável de magníficas actuações (não admira que haja tanta gente a tratar o FMM como o "melhor festival do país"), mas aquilo a que eu chamo "10 em 10" verifica-se apenas, no máximo, uma vez por edição (ou nem isso). Lembro-me dos Black Uhuru em 2001, por exemplo, do Tom Zé em 2004, do Trilok Gurtu em 2006, do Cyro Baptista no ano passado. Este ano, houve três destes concertos mágicos. Não um, nem dois, mas três. E depois houve os outros, também... poderosos (para usar uma expressão muito em voga nos músicos do Congo/Zaire, desde há décadas).

O primeiro dos 10 em 10: Um casamento perfeito



("Primeiro" porque aconteceu na quinta-feira, enquanto os outros foram nos dias seguintes.) Quem imaginaria que a música de tradição europeia a que o bretão Jacky Molard se tem dedicado ao longo da carreira, e que já apresentou por duas outras ocasiões em Sines, casaria tão bem com a música do trio maliano de Founé Diarra? Quem é que é capaz de dizer, sem mais nem menos, que um prato de peixe e de carne, em simultâneo, se pode tornar uma maravilha da gastronomia? A este respeito, aliás, o António Pires dizia que "o gajo que inventou a carne de porco à alentejana deve ter tido uma experiência semelhante". E como é que dançamos isto? Com as pernas para a frente ou com o rabo espetado para trás? Estas eram as interrogações iniciais de muitos, certamente, mas não foram mesmo mais do que isso mesmo: iniciais. Rapidamente, todos atirámos os axiomas etnomusicológicos para trás das costas e abraçámos calorosamente aquela que foi uma das experiências mais incríveis de sempre no palco do castelo.
E, mesmo que este encontro não tenha sido realizado de propósito para o festival (já existe até um disco), está aqui também patente mais uma das inúmeras razões pelas quais, todos os anos, fico a contar os dias até à última semana de Julho: Sines enquanto forum mundial de músicas e tradições, Sines enquanto oficina da música moderna. Não mais nada assim por cá.

O segundo dos 10 em 10: A gaja do theremin e os judeus nova-iorquinos



Os Barbez, grupo de Nova Iorque com ligações à Tzadik de John Zorn, apareceram no FMM com toda a pinta de outsiders. O grupo de Dan Kaufman já por cá tinha passado para um concerto na ZDB, para um concerto mediano, mas agora, com formação alargada e com um som perfeito que permitiu a percepção ao detalhe das texturas e frases criadas em palco, misturando klezmer com rock de câmara ou jazz marginal, a lembrar bandas da editora Constellation, tudo foi diferente, para melhor. Muito melhor. Houve algo que se manteve, contudo: o papel central de Pamelia Kurstin na música do grupo. Nunca se viu em Sines alguém a "tocar" theremin, o estranho instrumento literalmente intocável que os russos desenvolveram nos anos 20 do século passado (e para o qual Lenine chegou a receber aulas), e a estreia coube, felizmente, a uma das suas mais incríveis intérpretes (vejam o vídeo para apanharem breves imagens que testemunham esta afirmação).
E os Barbez ofereceram ainda a deixa ideal para apresentar outra das razões pelas quais o FMM é tão particular: a abertura (e o bom gosto) da programação. Por esse país fora, por essa Europa fora, é muito frequente encontrar programadores de festivais de world music de olhos e ouvidos fechados para o que se passa fora daquela gaveta. Antes eram as músicas de tradição europeia, depois, com a globalização das tournées, vieram os africanos extra-PALOPs. E pouco mais do que isso. Festivais como o FMM e o MED Loulé vieram provar que se pode ir muito mais longe. (Já agora, e que tal alguma formação de Masada ou o próprio John Zorn numa próxima edição, hum?)

O terceiro dos 10 em 10: Uma máquina de dança e alegria chamada Bilili



E a última grande explosão (literalmente até, pois coube-lhes as honras de fogo de artifício com que o FMM todos os anos se despede do castelo) veio com os Staff Benda Bilili. O disco era estupendo, já se sabia. Mas que os Staff Benda Bilili conseguissem, mesmo que esquecidos ou ignorados todos os problemas físicos que os debilitam, multiplicar a um ponto impensável toda aquela energia para o palco com as suas rumbas diabólicas e fazer transpirar as gentes no castelo daquela forma insana, era algo que nem nas minhas perspectivas mais optimistas encontrava lugar.
Mais uma deixa para outra das razões para elogiar o FMM: estar sempre na linha da frente no que há de mais "quente" a surgir no meio. Foi assim quando trouxe cá os Taraf de Haïdouks, o Tom Zé, a Rokia Traoré, o casal Amadou & Mariam, os Konono nº1, o K'Naan, o Cordel do Fogo Encantado, entre tantos outros.

Mais -- muito mais, claro -- se passou nos palcos do FMM ao longo destes quatro dias:

A novidade dos concertos gratuitos no castelo ao fim da tarde
A aposta parece ter sido ganha. Ao fim da tarde, quando os raios de sol ainda afrontavam as muralhas do castelo, tinha-se um cenário bem bonito para se assistir, com o rabo sentado na palha e hortelã espalhadas, a actuações como as dos manos Salomé com os Cantadores de Redondo (que por várias vezes foi arrepiante), dos 34 Puñaladas (tango em guitarras clássicas, numa passagem por estas bandas muito mais bem conseguida que aquela de há cinco anos atrás, em Porto Covo) ou a do genial Kimi Djabaté (é mesmo tempo de as pessoas começarem a prestar-lhe atenção e este foi um passo importante).

Um festival de vozes
Começou com Vitorino e Janita Salomé (já disse que houve momentos arrepiantes, não já?), e prolongou-se no canto yoik de Wimme Saari (há mais de dez anos que ansiava por um concerto dele por cá e nunca imaginei que fosse tão bem recebido como foi ali em Sines, no palco da praia, ao fim da tarde, para uma música que se imagina nas montanhas, no frio), a voz quente de Alejandro Guyot, dos 34 Puñaladas, a voz de uma diva do flamenco (Lole Montoya) e, a mais impressionante, a mais esmagadora, a mais arrebatadora de todas, a voz incrível de Yasmim Levy, israelita que tem vindo a trabalhar em reportório de influência e tradição ora ladina (os judeus que habitavam a Península Ibérica até ao século XV), ora flamenca.

Os menos bons e os maus
Depois de Cui Jian, há dois anos, houve mais um azar com chineses, agora com a cantora Sa Dingding. Usar um ou outro instrumento tradicional num aparato de música ligeira com arranjos perfeitamente desinteressantes parece mais cenário de festival da Eurovisão.
Os Galaxy, de Timor Leste, já muito fazem, para aquilo que estes miúdos viveram enquanto cresceram, para o país jovem e onde tudo está por fazer em que vivem neste momento, o mesmo país em que, por diversas razões, as tradições musicais são muito pobres, quase inexistentes (mas não deixam de soar a uma banda de reggae e de metal da margem sul a dar um dos seus primeiros concertos num palco refundido da festa do Avante! -- e, dias após ter visitado aquele magnífico país, acreditem que me custa dizê-lo).
As Rubias del Norte, o outro projecto de Olivier Conan, que no ano passado ali trouxe os Chicha Libre, perdem-se numa estilização (a palavra roubo-a ao Rui Neves) demasiado plástica do que é o reportório latino que vieram reciclar. Se os Chicha Libre conseguiam fazer dessa mesma reciclagem um ponto forte (nesse caso, sobre as chichas peruanas), as Rubias deitam quase tudo a perder.


Agora, é arranjar forma de entreter o tempo enquanto se espera, por 51 semanas, pela próxima edição do FMM.

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