Não há quem duvide que o fado voltou à ribalta grande, aqui e lá fora. Por cá, deixou de ser apenas o pequeno orgulho sociocultural do betinho do CDS ou do marialva do Ribatejo para explodir em novas vozes, em novas casas e novos antros de fado vadio ou erudito para locais e turistas, em salas de espetáculo esgotadas, em espaço de fartura nos canais mediáticos para novos e velhos, pobres e ricos. Mas coloquemos um travão neste entusiasmo, porque a canção continua essencialmente a viver num museu, tanto mais depois de atingir o estatuto UNESCO de Património Imaterial da Humanidade. É um museu reconstruído, é certo, agora com janelas abertas para a rua, mas continua a ser museu.
Não tem faltado quem tente tirar o fado da redoma conservadora que o encerra em memórias, tempos e contextos sociais que a maioria dos portugueses deseja ver pelas costas, mas com que métodos e resultados? Confesso que, ainda que gostando, nunca me entusiasmei desmesuradamente com a Mísia; cheguei a insultar o Paulo Bragança num concerto em que os Calexico o convidaram ao palco; tenho pouco ou nada a dizer sobre quem maltrata a guitarra portuguesa, tratando-a como um adorno na música ligeira; quase vomito com algumas das experimentações eletrónicas no fado; gosto de Zambujo, mas já foge mais para a bossa nova do que para o fado. E, claro, tenho a maior das admirações por gente como o Carlos do Carmo, o Camané e seus irmãos, a Cristina Branco, a Ana Moura, etc., mas esses trabalham em maior ou menor medida, e muito bem, no fado do museu, e são outra cantiga.
É neste contexto que surge a Gisela João. O camarada António Pires andou durante tempos a chamar a malta para a ouvirmos cantar na Bela de Alfama. Não fui e arrependo-me de só agora a conhecer ao vivo, numa altura em que já conheço o seu álbum de estreia de trás para a frente. A Gisela é dona de uma voz incrível, uma das melhores desta nova geração, talvez mesmo a mais apaixonante. Mas há muito mais. O que a Gisela está a fazer pelo fado merece o agradecimento de todos nós que gostamos de música, de todos nós que temos esta relação tímida com a canção portuguesa. As biografias que o futuro lhe escreverá debruçar-se-ão, espero, sobre o meio em que cresceu – Barcelos, uma das três capitais nacionais do rock – enquanto mola determinante para a sua atitude em palco e fora dele. Talvez daí venha a Gisela iconoclasta, que entrou em cena de pernas ao léu, com um vestido branco, uma cor proibida por cartilha, para depois o trocar por um conjunto blusa-calção num chocante colorido de verão (estava demasiado vento para o vestido). Talvez daí venha a Gisela festiva e extrovertida, que contagiou toda a plateia do castelo na dança dos fados corridos e dos malhões. Talvez daí venha a Gisela com tudo de miúda e nada de diva, que improvisa momentos em palco, que não se deixa abalar e até disso tira partido quando um dos músicos se vê obrigado a abandonar por instantes o seu posto de trabalho.
Se quisermos, e ainda que através de métodos muito diferentes, a forma como a Gisela trabalha o fado é análoga à irreverência crítica e cheia de vida e de graça com que os Gaiteiros de Lisboa tratam as tradições rurais e o cante de trabalho, por exemplo. É dar vida à música no momento atual, não é ficar apenas a recriar o passado. É tratar a música por tu com o mesmo respeito que as gerações mais jovens tratam por tu os pais. Isto multiplica o entusiasmo gerado na relação entre músicos e público. Na passada sexta-feira, no Castelo de Sines, ouviu-se, dançou-se, cantou-se o fado, com toda a naturalidade, um fado que já não é apenas aquele que cabe ao museu, mas um que esteve bem vivo entre os que tiveram a sorte de partilhar este momento.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Os comentários antigos, da haloscan/echo, desapareceram. Estão por isso de regresso estes comentários do blogger/google.