segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Ensaio sobre a cegueira (mas desta vez sobressai o melhor dos homens e mulheres)



Se podes ouvir, escuta. Se podes escutar, repara.

A citação de Saramago ao "Livro dos Conselhos" não é bem esta, mas assim ajusta-se bem a "Eclipse", o espetáculo que o casal Amadou & Mariam trouxe ontem ao Grande Auditório da Gulbenkian. Um espetáculo que prometia uma experiência multissensorial única, vedado que estava o sentido da visão de se distrair (a sala foi mergulhada durante quase todo o concerto na completa escuridão), deixando livres a audição para a música e os sons ambientes da história subjacente, o olfato para os odores de África e a perceção da temperatura que foi oscilando ao longo do concerto.

E foi, de facto, uma experiência única, incrível, inesquecível.

Já todos passámos pela experiência de fechar os olhos durante um concerto, deixando o som entrar livremente nos ouvidos sem disputar a atenção com o sentido da visão. Ou até em casa: se nunca o fizeram, experimentem pôr um disco a tocar, apagar a luz e deitarem-se no sofá, no chão, onde quer que sintam o corpo relaxado o suficiente para não vos distrair do que sai das colunas. Se nos agrada aquilo que escutamos, essa ligação pura e direta à música pode até fazer-nos transportar por uma viagem onírica. Sem químicos.

Imagine-se agora isto num concerto inteiro (ou quase inteiro). A ajudar, um som em quadrifonia, equilibrado e equalizado de forma perfeita. A Mariam Doumbia a ouvir-se atrás, do lado esquerdo, a kora a surgir do lado direito, o resto da banda lá à frente. Jogamos à cabra-cega e estamos a adorar, sentimos a felicidade das crianças que já fomos. Alguém dançará, certamente, pois já não está ali a vergonha que teria para se levantar sozinha das poltronas nos concertos iluminados. Casais trocarão carícias. Talvez haja quem se sinta desconfortável por não ter sido assim que a MTV ou o youtube a ensinou a ouvir música. Não temos nada para ver, nem para ser visto. Estamos apenas a escutar, a reparar nos sons que habitualmente não reparamos. Sentimo-nos tão perto dos músicos, tão perto da história de amor que uniu Amadou e Mariam e que tem sido levada aos palcos de todo o mundo. Aqui escutámo-la com direito a narração do percurso, desde que perderam a visão, desde que se encontraram na Eclipse Orchestra do Institut des Jeunes Aveugles de Bamako, até se tornarem as estrelas mundiais que são hoje. Temos um breve relance da maneira como os dois veem o mundo.

E sentimo-nos felizes por nos terem deixado experimentar o bom que é reparar no que escutamos.

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