À primeira vista, parece ser verdade. Se recorrermos por exemplo à lista de mortes no rock'n'roll disponível no Wikipedia (List of deaths in rock and roll), a contagem de 2016 vai já em 188 óbitos, quando em 2015 foi 93, em 2014 foi 114, em 2013 foi 107 e antes nunca passou dos dois dígitos.
Pode ser que o gráfico acima esconda o efeito de se dar maior atenção às mortes mais recentes. Será mais provável que um editor do Wikipedia atualize esta lista no dia em que morre alguém no mundo da música, mesmo quase virtualmente desconhecido, do que recuperar todas as mortes, incluindo as dos artistas quase virtualmente desconhecidos, que ocorreram no passado quando não havia Wikipedia nem sequer internet. Portanto, concedamos que aquela inclinação seja menos acentuada.
Curiosamente, este efeito, o de se dar maior atenção às mortes mais recentes, também ajuda à consolidação da ideia de que 2016 foi especialmente castigador. É quase como aquele alarme público, ocorrido por alturas dos 90s, à conta de uma suposta explosão de criminalidade em Portugal. Talvez houvesse maior criminalidade, mas que parte desempenhou, na consolidação popular dessa ideia, o facto de passarmos a ter mais canais de televisão, ainda por cima apostados, como não se via antes, em abrir todos os noticiários com os crimes do dia, da semana e do mês que havia para noticiar? Não terá sido por estarmos mais atentos ou mais expostos que achámos que havia mais criminalidade?
Voltemos aos mortos na música. Há ainda outro efeito, mais importante ainda e que muitos parecem ignorar, que contribui para esta aparente tragédia de 2016. Comecemos pelas seguintes questões:
- Desde há quanto tempo temos rock'n'roll? Há sessenta e poucos anos.
- Mas desde há quanto tempo é que começaram a nascer à séria artistas e bandas por todos os cantos do mundo, que gravassem discos e saíssem das suas origens? Finais de anos 60, concordamos?
- E desde há quanto tempo é que temos meios de comunicação e estruturas de apoio (espetáculos, promoção, etc.) a tornar populares estes músicos, de um e de outro lado do Atlântico, entre mundo ocidental e mundo esquecido? Em Portugal, com significado efetivamente popular, abrangente, massivo, só depois do 25 de Abril...
Parece assim que o verdadeiro crescendo não está no episódio final da morte, mas sim no aparecimento de nomes reconhecidos pelo mundo ao longo das últimas décadas. E isto aplica-se não só no rock, obviamente, mas em toda a cultura pop. No cinema, na escrita, no teatro, na televisão, no espaço público, no desporto até. Há uma vaga de nomes e de caras de pessoas que nasceram há 70 anos, em média, que começámos 'todos' a conhecer por volta dos anos 60, enquanto sociedades cada vez mais atentas ao que se passa no mundo cada vez mais global, e que agora chegam ao fim do seu ciclo de vida. O Leonard Cohen apareceu com "Songs of Leonard Cohen" em 1967, quando tinha 33 anos. O David Bowie estreou-se também em 1967, com um álbum homónimo, aos 20 anos. São apenas dois exemplos, mas a lista das mortes do Wikipedia que acima cito apresenta muitos mais. Cada vez em maior número, cada vez mais conhecidos por mais gente.
Quando acima falo em pessoas que nasceram há 70 anos, em média, não é por acaso. Essa é, na verdade, a média das idades que os desaparecidos de 2016 tinham à data da morte (69,4, mais precisamente).
Como se vê no gráfico, a média de idades tem vindo a subir. Pois claro, à gente do rock'n'roll também cabe a sorte de poderem viver mais tempo, como no resto da sociedade, dados os avanços na medicina e nas condições sociais. Mas neste meio específico do rock há ainda pelo menos duas causas de morte que são particularmente evidentes numa determinada época: o consumo de drogas pesadas e a SIDA. Tanto uma como a outra vieram a perder a sua importância, enquanto causas de morte, nos anos mais recentes. A grande vaga de mortes por overdose e por SIDA no mundo do rock ocorreu nos anos 70 e 80. Se quisermos, as mortes que temos tido nos últimos anos neste meio são as dos... sobreviventes. Desculpe-me La Palisse, mas esta conclusão incrível serve apenas para complementar a ideia de que os sobreviventes chegam aos dias de hoje em número cada vez maior. Logo, também por esta via a probabilidade de termos gente conhecida a aparecer nos obituários diários é cada vez maior.
Em suma, podemos dizer a 2016 para seguir em paz, porque não terá assim tanta culpa no cartório. Aguardemos o obituário de famosos que 2017 nos trará. É que pode até ser ainda mais extenso.
Bom ano!
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