quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Os sons urbanos como sussurros da alma das cidades que a têm (*)

É já um lugar comum falar-se na importância que as tecnologias de comunicação tem vindo a ter, no âmbito desta sociedade global, porventura cada vez mais homogénea, no encurtamento das distâncias que separam os indivíduos de todo o mundo. Hoje, por exemplo, temos amigos no Japão, trocamos ideias com argentinos ou sabemos mais, se quisermos, do que é a África outrora escondida ou não alinhada, como se dizia. Mas nos anos 50 do século passado, os situacionistas usavam o termo psicogeografia para abordarem uma questão que lhes era muito cara: a geografia tinha uma influência fundamental no comportamento dos indivíduos e das sociedades. Não é difícil de perceber a mecânica desta relação entre espaço e acção. Na música, por exemplo, sempre se usou, por vezes de forma abusiva, o termo "cena" para designar fenómenos locais que surgiam a partir de uma cidade ou região. Ora porque os músicos se conheciam dos mesmos locais de paragem (o disco no Studio 54 de Nova Iorque ou o punk de Londres, por exemplo), ora porque selo com um carácter editorial bem definido funcionava como pólo aglutinador dos músicos mais criativos da zona (a Factory de Manchester), ora porque a confluência entre tradições locais e contaminações externas faziam da cidade laboratório para novas formas de expressão (o afro-beat de Lagos), os fenómenos nasciam e consolidavam-se num sítio específico, só se expandindo mais tarde, em função da popularidade, por esse mundo fora. Ainda hoje encontramos alguns exemplos desta ligação umbilical entre geografia e música: Brooklyn, em Nova Iorque, por exemplo.

É esta relação que Manuel Fernandes Vicente explora, num registo enciclopédico, no seu livro "Música nas Cidades", recentemente dado à estampa pela RésXXI. "Música nas Cidades" recupera os textos que, em tempos, o Blitz, ainda em formato jornal, publicava semanalmente. "Rock progressivo de Amesterdão", "A rembetika de Atenas", "Trip-hop, o som de Bristol", "Canterbury Scene", "Os ritmos Gnawa de Marraquexe", "Menphis Soul", são alguns dos inúmeros capítulos que MFV aqui apresenta. Com textos escritos de forma pedagógica e rigorosa (na medida do possível, dado que o rigor máximo só poderia ser obtido numa enciclopédia de muitos volumes), "Música nas Cidades" ajuda a perceber as razões que levaram ao nascimento de muitos destes fenómenos e serve como um excelente ponto de partida para entusiastas e curiosos.

"(...) dentro da música que consumia (...) cedo comecei a coleccionar com particular empenho discos de rock alemão, hoje mais conhecidos por krautrock. Queria saber tudo, mas mesmo tudo, sobre aquelas bandas alemãs. (...) Apercebi-me porém gradualmente que as bandas de Berlim não tocavam como as de Munique, eram hipnóticas mas eram diferentes. Havia de haver razões. As de Berlim, deviam ter o estigma do muro, não o suportavam, e vingavam-se em viagens pelo Cosmos. Munique era mais libertária, tinha comunidades de jovens universitários e um sentido profundo de revolta pelo passado. E os Amon Düül II traduziam tudo isso muito bem. E as bandas de Dusseldorf eram bastante diferentes dos grupos de Hamburgo ou de Colónia. Além disso parecia haver sempre um elo comum que marcava quase todos os seu músicos. Dei comigo, quando ouvia um grupo alemão novo nos anos 70 (eram muitas centenas) a questionar-me de que cidade seriam com base nas suas texturas musicais (acertei a maior parte das vezes)", dizia-me por mail o MFV, num raciocínio que define bem a ideia patente ao longo destas 360 páginas.

"Música nas Cidades" tem apresentação pública agendada para o próximo sábado, 25 de Outubro, na FNAC do Chiado, a partir das 17h.

(*) Título gentilmente roubado ao prefácio de MFV (já agora, o livro conta ainda com um prefácio do António Pires).

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