sábado, 25 de outubro de 2003

Entrevista a Tom Zé (Parte 6)

(Termina aqui a publicação da entrevista que Arthur Nestrovski e Luiz Tatit, da Folha de São Paulo, fizeram a Tom Zé. Agora é aguardar o livro "Tropicalista Lenta Luta", onde constará esta mesma entrevista em formato alargado, bem como vários textos, fotografias e todas as letras do músico bahiano. A edição está para breve e vai coincidir com o lançamento do disco "Imprensa Cantada 2003" e do DVD "Jogos de Armar".)

Nestrovski - Podemos voltar um pouquinho para Irará? Queria que você contasse de novo duas histórias lindas, que já me contou: a primeira vez que você viu uma torneira e a primeira vez que viu uma lâmpada.
Nossa Senhora! Olha, imagine a torneira... Imagine que, para ter água de beber... água de cisterna a gente tinha, cisternas muito fundas lá em Irará. Essa água dava para lavar as mãos, tomar banho, lavar prato; mas para beber tinha de ir na Fonte da Nação. Então vinha o aguadeiro, que vendia aquela água potável. Chegava na sua porta com um jegue portando quatro barris na cangalha. Você comprava essa carga toda, botava numa talha; durante uma semana, tinha água para beber e para cozinhar.
Um belo dia, vou para Salvador e tia Wanda me fala: "Lave o rosto aí". Achei estranho, porque era uma pia sem água. Vacilei: "Não tem água". Ela disse: "Olhe a torneirinha aí". Girei cuidadosamente a alça superior e saiu água! Não contei nada a ela, só pensei: "Puxa vida, mas que danação!". Depois fui lá para cima. Quando ia saindo, tia Wanda me disse: "Feche". Voltei e fechei; e a fonte sumiu, não é? Isso, realmente... para o meu mundo era mágica!
Uma água que está lá longe, que você vai buscar, pega na fonte, onde está minando, carrega no jegue, bota dentro de casa para beber. Mas eis que num contrapasso, olha a água vindo por uma pequena torneira ali quietinha e pronta para o inesperado, que coisa de mundo de conto de fadas, não é? Que coisa louca, uma torneira e o que era mais ainda de conto de fadas: você fecha a torneira, acabou a fonte. A fonte desapareceu. Cadê a fonte? Não está mais aqui. A fonte foi retirada. Encanto, o Mágico de Oz passou...

Nestrovski - E a lâmpada, a mesma coisa?
A lâmpada foi na porta de seu Chaves, o farmacêutico. Não havia ainda eletricidade em Irará, porque só chegou em 1950. E isso foi em 1947, 48, coisa de João Marinho, família muito rica.
Enfim, João Marinho tinha posto luz elétrica nas casas que construiu, era gente grande em Feira de Santana. Fez casas novas, modernas, aquela coisa brasileira, arquitetura dos anos 50 e tal e botou luz elétrica. Um dia, minha mãe foi visitar a mulher do seu Chaves e, no pátio, assim, naquela primeira entrada que já é coberta, essas varandinhas da casa, ela disse: "Deixa eu lhe mostrar" e acendeu a lâmpada.
Nossa Senhora! Aquela luz sem nenhuma mancha! Porque os candeeiros nossos sempre tinham uma coisa que não estava bem, não é? A fumaça que subia do próprio candeeiro sujava o tubo. Nunca aquela luz era perfeita. Eu fiquei extasiado. Criança não se mete em conversa de adulto, então podia sentir à vontade, era uma vantagem.
Aí eu me dizia: "Meu Deus, vai morrer agora a catapora, a mula-sem-cabeça, o lobisomem" -aquelas histórias que me aterrorizavam, principalmente naquela casa enorme, com piso e forra de madeira, que estalava a noite toda, esfriando do sol, não é?
Eu passava horas sem dormir. À noite, era a hora do terror. Criança lá vai dormir às 20h e sofre a noite toda, ninguém liga se está dormindo ou não. Vai agora, com uma luz dessa não pode aparecer bicho nenhum; porque a luz do candeeiro bruxuleando, palpitando assim levemente, já era por natureza vizinha da mula-sem-cabeça, mas essa lâmpada, absolutamente branca? Nossa Senhora, aquilo foi... Até hoje ainda me lembro daquela cor, daquela cor que é uma cor que você nunca viu antes. Isso que é o inaugural, não é? A placa inaugural, a cor daquele filete lá, que agora a gente sabe que é tungstênio.

Tatit - E quando a luz elétrica chegou na cidade?
Quando botaram luz elétrica em Irará também foi uma emoção. Porque criança não tinha o que fazer. Valha-me Nossa Senhora! Um dia é um tormento de vazio. Então, tudo o que acontece na cidade é uma grande novidade. Botar luz elétrica em Irará... Você ficar na janela olhando aquele movimento lentíssimo: um dia chegava gente para cavar um buraco. Um dia botavam ali uma coisa de madeira desse tamanho, que chamavam "poste". Um dia fincavam esses postes. Um dia vinham pregando umas primeiras coisas, que futuramente vão segurar os transformadores. Depois, as linhas de três fios, da corrente de 11 mil volts. Fui aprendendo tudo, porque só vivia olhando e escutando.
O fato é que, depois de montarem tudo, consegui repetir uma ligação trifásica num nicho lá de casa e acendeu. Porque eu não tinha outra coisa para fazer: era só observar. E quando a luz estava para inaugurar na cidade -tinha ouvido dizer que ia ser ligada no sábado às 16 horas-, então tomei coragem, porque criança não falava com adulto, e perguntei ao funcionário. E ele: "É, vai ligar às 16h". E eu: "A que horas chega aqui?".
Olha, de Coração de Maria para Irará você passava meio dia viajando. Saía de manhã, chegava lá ao meio-dia. Podia demorar pouco, mas tinha que demorar alguma coisa! Quando ele me disse: "Chega na mesma hora", pensei que estivesse zombando e fechando a conversa. Já estava segregando criança. Fiquei triste, porque eu estava conseguindo respostas de um adulto, ainda mais um adulto da eletricidade, não é?

Nestrovski - Foi seu tio quem trouxe a luz?
É. Meu tio Elísio botou luz elétrica em Irará. Era prefeito de Irará. Eu estava no palanque no dia em que ele botou a luz com a roupa de caroá, muito humilhado porque a roupa do filho dele, Jarbas, era de casimira. Esses contrastes...

Sem comentários:

Enviar um comentário

Os comentários antigos, da haloscan/echo, desapareceram. Estão por isso de regresso estes comentários do blogger/google.